A minha vida conta no seu activo
vários transes de que ela saiu vitoriosa por manifesta complacência da
Providência. Primeiramente, foi em pequenino, mal me lembro, quando, indo
dentro de um carro de bois, sem ninguém à sai frente para lhes regular a marcha
e a direcção, como é péssimo costume da gente da lavoura, o gado, ao dobrar um
ângulo do caminho, que só dava passagem a um carro, encostou-se demasiado ao
valado interior, e o carro, levantando desse lado, tombou para fóra, ficando de
rodas no ar. Felizmente a sebe susteve o carro, que, a não ser isso, ter-me-ia
esmagado.
De outra vez, brincando à beira
de uma poça formada pelas águas das chuvas, resvalei para a água, de onde
dificilmente consegui safar-me por me ter agarrado a umas ervas da margem.
Há poucos anos, em Lisboa, ao
atravessar, de noite, uma rua mal iluminada, sinto-me violentamente arrebatado
por um bólide, destes muitos que infestam as vias públicas. Em local mal
iluminado, eu, encadeado pelos faróis do veículo, que tomei por um carro
ligeiro, meti-me a atravessar a avenida supondo fazê-lo na rectaguarda do
carro, mas em vez que um auto ligeiro, era um descomunal camião, daqueles que
têm uns ganchos atrás. Foi um destes ganchos que me agarrou pelo sobretudo, que
eu levava desabotoado, e me arrastou durante não sei quantos metros. Foi tudo
tão rápido, que não sei ao certo como as coisas se passaram. Apenas sei que dei
comigo estatelado perto do passeio, com a cabeça intacta, mas um sobrolho
cortado por uma das lentes dos óculos e a escorrer sangue, e envergando metade
do sobretudo, porque a outra metade nunca mais a vi. Duas semanas de caminhadas
para o hospital do Rego que, com uns pontos naturais e umas injecções
anti-tetânicas, me pôs em condições de apanhar outra.
Eu tinha por mim o anjo da
guarda, porque, de entre 99 probabilidades de ficar ali sem vida, aproveitei a
única de que podia dispor e que providencialmente me salvou.
Outra circunstância que foi
decisiva na marcha da minha vida, poupando-me e à família a um naufrágio
marítimo e possìvelmente à morte, é a que vou contar, cumprindo a promessa
feita na penúltima crónica.
Quando, em princípios de 1923,
passei em Lourenço Marques vindo de Tete para Moçâmedes, uma determinação do
Governo da Província de Moçambique não permitia que fossem concedidas passagens
em navios estrangeiros a indivíduos viajando por conta do estado, a menos que
não pudesse ser utilizado barco português, como era o caso das viagens para o
Oriente, para onde não havia navegação portuguesa.
Ora sucedeu que o navio que se
seguia, a caminho da costa ocidental, depois da minha chegada, estava para
partir quando desembarquei com a família em Lourenço Marques e o navio seguinte
só devia partir um mês depois. Tal era o tempo de espera que nós íamos ter ali,
aguardando transporte.
Não me apoquentava a despesa que
fazia em Lourenço Marques, porque o subsídio de viagem que recebia um
funcionário da minha categoria quando transitava naquela província, era
suficiente para lhe fazer face. Mas quem viaja, demais com crianças, o que
deseja é chegar depressa, e isto me levou a requerer ao Alto Comissário que
excepcionalmente me fosse permitido embarcar para Angola num navio alemão — o
«Ussukuma» — que de aí a dias devia partir para o Lobito, o que representava
uma economia de 4 libras diárias para a Fazenda Nacional. O Alto Comissário –
que era o Dr. Brito Camacho, homem honesto e inteligente — aceitou a sugestão,
deferindo o meu requerimento.
Foi assim que eu embarquei
naquele navio alemão, satisfazendo desta forma a minha vontade de visitar todos
os portos da África do Sul e Sudoeste Africano, nos quais o navio tocou, e
defendendo os interesses da Fazenda Nacional, que, ao cabo de 24 dias que
permaneci em Lourenço Marques, me liquidou 96 libras, de subsídio de viagem.
Quanto custaria a minha estadia
ali, se ali me conservasse até à partida do primeiro navio português para
Angola, não o posso hoje calcular, mas deveria ser superior a 120 libras,
porque o navio que me estava destinado — o nesse tempo, já velho e antigo
«Moçâmedes» — partiu de Lourenço Marques mais de um mês depois que eu ali
cheguei.
Este navio foi encontrar-me no
Lobito, onde estive 3 dias à sua espera para embarcar para Moçâmedes, porto
onde o «Ussukuma» não tocou.
Pobre navio e infelizes os
passageiros que nele viajavam depois da Cidade do Cabo, no regresso! E feliz
eu, mais a minha família, pela providencial inspiração de requerer a passagem
no navio alemão. O «Moçâmedes», no seu regresso da costa oriental, naufragou
nas águas do Cabo Frio, ao sul do Rio Cunene. Morreram alguns passageiros, e os
restantes salvaram-se, despois de alguns dias e noites passados aflitivamente
nas baleeiras, verdadeiras cascas de noz balouçando nas águas do Atlântico,
O navio terminou ali os seus
dias, balouçando-se sobre um rochedo que lhe trespassou o fundo.
(in Mensagem de 15 de setembro de 1959)
António Augusto de Miranda
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