recordando, março de 1960


A nossa vizinha e risonha vila de Angeja — assim ainda é tratado o núcleo principal da freguesia deste nome, que foi sede de concelho até 1853, extinto de certo por virtude da criação de Albergaria-a-Velha — orgulhava-se outrora (refiro-me ao tempo em que eu era menino e moço), de duas coisas: uma era a sua ponte, que ligava as duas margens do Vouga, rio que separa aquela freguesia da de Cacia; a outra era o seu formosíssimo túnel de álamos, o qual logo que as árvores se revestiam de folhas, quase cobria por completo, como uma nave de templo gótico, a estrada em toda a extensão, desde a vila até ao rio, numa distância de cerca de dois quilómetros, isto é, até à ponte que unia as duas mencionadas freguesias. Quem ia de Aveiro, logo que deixava Cacia, entrava na «ponte de Angeja» para atravessar o rio; e, transpondo este, entrava imediatamente no túnel, ao fim do qual se lhe deparava a vila de Angeja. Isto quer dizer que túnel e ponte com o seu trecho de rio, que, ali como em todo o percurso, atravessa uma região de grande beleza, formavam um conjunto na contextura do formoso quadro em que a natureza e o homem colaboravam de mãos dadas.
Pois tudo desapareceu. Não digo bem: desapareceu o túnel, impiedosamente sacrificado, quiçá à decrepitude, e com certeza também à feróz sanha do nosso proprietário rural e analfabeto, inimigo figadal da árvore; e desapareceu a antiga ponte, a qual foi substituída por outra, que é uma obra-prima da engenharia moderna.
O que causa pena é o desaparecimento do lindo túnel de álamos, que era um dos mais belos que existiam. Muitas pessoas se deslocavam a Angeja, no verão, para gozar as delícias do aprazível local com as duas áleas em torcicolos bordejando a estrada que, de um lado, era acompanhada pela fita prateada do rio luzindo pelos interstícios das plantas, afora a deliciosa sombra que regalava os encalmados.
Pois, hoje, restam umas pobres farripas semelhando uma dentadura desdentada, com mais raleiras que dentes. E não houve quem pusesse cobro àquele vandalismo! É possível que tal destruição das árvores obtenha a absolvição pela economia que representa para os donos dos campos marginais, prejudicados pela sombra das árvores. Tenho a impressão de que se pretende bordar a estrada de arbustos baixos, em sebe, para não deixar prejudicar os terrenos do lado do Norte com as sombras dos álamos. Será assim? Mas a beleza e os benefícios auferidos de uma alameda, como aquela era, não valerão mais que uma dezena de alqueires de milho e feijão? Os grãos que tenho visto destruir nos dias bárbaros do Entrudo valem muito mais do que os que a sombra do túnel de Angeja não deixava desenvolverem-se.
Quanto à ponte, a substituição foi sumamente vantajosa em todos os sentidos. A antiga era uma ponte de madeira, sujeita a todas as contrariedades de uma construção dessa natureza. E era paga a portagem. Se a memória me não atraiçoa, custava a cinco reis por pessoa que nela pusesse os pés, no tempo em que os cinco reis eram dinheiro. Por isso algumas vezes os estudantes que iam para Aveiro, a cavalo no jerico das virtualhas, como era uso naquele tempo, antes de chegarem à ponte ordenavam ao lacaio que os acompanhava que subisse para a garupa do burro, que assim ia ajoujado com uma carga excessiva como o burro da fábula, da qual era aliviado logo que passavam a ponte. E isto para poupar os cinco reis da portagem, que incidia sobre os pés e não sobre as cabeças, (das pessoas e não dos burros).
Tudo isso desapareceu, com todo o seu pitoresco e beleza, para dar lugar à satisfação das necessidades dos tempos modernos. Hoje, os automóveis atravessam o rio com a mesma velocidade com que vinham na estrada, sem afrouxar ao entrar na ponte, que ela é larga e sólida. Acabou o guarda com as arrelias que os rapazes lhe pregavam, pondo o burro com carga a dobrar e também acabaram os inconvenientes das cheias que, hoje, só excepcionalmente atingem o nível da ponte.
Mas surgiu outra arrelia, e esta para os angejenses: é que a ponte que sempre fora conhecida e chamada «ponte de Angeja», sem agravos nem atropelos dos vizinhos, que, no tempo em que ela era de madeira, nunca se lembraram de lhe chamar sua, agora, que ela é uma obra de arte e um produto da engenharia moderna chamam-lhe «ponte de Cacia».
Quem tem razão? Se havia razão para se chamar «ponte de Angeja», e assim se lhe chamou sempre, não vejo razão para que ela agora seja de Cacia, mudando assim de dono como quem muda de camisa. É certo que a ponte, material e objectivamente considerada, é outra. Mas não se trata da ponte nesse sentido, porque apenas houve uma substituição de material. O lugar é o mesmo, podemos afirmar que não houve mudança que permita chamar-lhe o que ela nunca foi — no nome: é claro.
Mas também não vem mal ao mundo que uns lhe chamem «ponte de Cacia» e outros continuem a chamar-lhe «ponte de Angeja». E se se começasse a chamar-lhe «ponte de Angeja e Cacia»? nisto é que estaria a verdade e acabar-se-iam as controvérsias.
Para nós, os de fora, que somos amigos de uns e de outros, e que, aqui, nos contentamos com a velha e arruinada ponte da Fontinha, que também tem alguma coisa da nossa terra, mas que não nos dá vaidade nem orgulho, tanto serve que seja de uma forma como de outra. No entanto, aí lhes ofereço o alvitre, que é de graça.
 (in Mensagem de 15 de março de 1960)
António Augusto de Miranda

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