Recordando, maio de 1956


A Semana Santa tem, nas aldeias do Norte de Portugal, um ar soturno, parecendo que a natureza acompanha a tristeza que a Semana Santa inspira. A ideia de que naquele período se comemora a Paixão do Salvador é motivo para todos sentirem essa impressão de melancolia. Como as coisas nos aparecem segundo o nosso estado de espírito, tudo nesses dias parece triste, sobretudo quando na freguesia há as cerimónias das endoenças.
Só uma vez, desde que me conheço ― aí por volta do ano de 1894 ― é que houve endoenças em Alquerubim. Por sinal, deram brado pelo brilho e perfeição das solenidades, tanto internas como externas. Que de povo das freguesias vizinhas não acorreu aqui, na Quinta e Sexta-feira Santas! E que linda, a procissão do enterro, que me ficou na memória principalmente pelos fogaréus que iluminavam o caminho.
Que deslumbramento para os meus olhos de criança rústica, que nada conhecia do mundo, aquele efeito das luzes picando a treva, às dezenas, talvez centenas, em duas enormes filas movendo-se lentamente, a passo de andor, sob a revoada das litanias, dos cânticos, e das peças fúnebres da filarmónica.
E os anjos conduzindo as insígnias da crucificação ― a lança, a esponja, a cruz?
O último dia da Semana Santa, o Sábado Santo ou da Aleluia, marcava uma viragem profunda no ambiente, com o repique dos sinos, a queima do Judas e os acordes da charanga, quando a havia para festejar o acontecimento. O Judas era representado por um boneco de palha enforcado num fio de arame, seguro entre dois postes. O auto de fé fazia-se sob uma grande chinfrineira do rapazio, que uns anos mais tarde passou, algumas vezes, a ser acompanhado pelo som do terceto do Zé Caldinho, constituído por zabumba, pífaro e caixa, qual deles puxado com mais gana, tudo misturado com o estralejar das bombas ocultas no ventre e nos membros do boneco, as quais iam rebentando à medida que lhes chegava o fogo, e do estourar do foguetório de três estalos e das chufas e injúrias com que a garotada cobria o discípulo infiel que traficara com a liberdade e a vida do Mestre.
Merece duas linhas o Zé Caldinho, um dos bons tipos que esta aldeia tem produzido. Apoucado do siso e do físico, a ocupação que melhor lhe quadrava era a de malhador de bombo, que o malhar a eira a mangual é penoso e demanda robustez que ele não tinha. O bombo é leve e a maceta não precisa de braço forte para tirar do bojo da zabumba sons cavos, profundos, que enchiam as medidas ao Zé Caldinho, ôco de sentimento artístico como o próprio bombo. Como este instrumento, porém, não tem, só por si, aceitação onde quer que seja, o Zé Caldinho teve artes de desencantar dois colaboradores, um para o pífaro, outro para a caixa, com os quais formou o seu terceto que não havia arraial, festa ou ajuntamento folgazão aonde não comparecesse, convidado ou não, pelo prazer de atroar os ares, muitas vezes remunerado como os cães.
Por isso este terceto aparecia na queima do Judas, que, executado no mais estrondoso auto de fé, era apedrejado, caindo em fanicos incandescentes, jogados aos pontapés do rapazio e até dos adultos, que também refocilavam no prazer de castigar o discípulo traidor, embora simbolicamente figurado num espantalho de palha e trapo.

António Augusto de Miranda

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