Recordando, janeiro de 1957


Ao ouvir, no dia 26 de Dezembro, dia de Santo Estevão, estralejar os foguetes que alguns devotos lançaram ao ar comemorando o dia do Santo, vieram-me à memória as lindas festas que antigamente se realizavam no pitoresco outeiro do lugar de Calvães, o qual ainda hoje é conhecido por “Cabeço de Santo Estevão”.
Uma festa, quando o ar livre colabora nela, ganha em valor pelo grau panorâmico do sítio onde se realiza; e quando esse sítio se alcandora numa elevação que domina um horizonte rico de imagens e de cor, como a do Cabeço de Santo Estevão, numa romaria que ali se realize assume aspectos de beleza rara, como a que se fazia ali na tarde do domingo da festa, a qual era das mais atraentes que tenho conhecido nestas redondezas. Dentro de um círculo de 12 quilómetros de raio, só o da Senhora do Socorro, no Bico do Monte, cerca de Albergaria-a-Velha, consegue suplantar, em beleza panorâmica, a romaria que outrora se realizava em honra de Santo Estevão, no lugar de Calvães, desta freguesia.
Porque deixaram que a capela se arruinasse, a ponto de desaparecer até ao último grão de caliça? Com uma reparação a tempo, de pequena despesa, ter-se-ia evitado a ruína da capela e a festa ainda ali se realizaria anualmente, como se realizam a de Nossa senhora das Dores, em Paus; a de S. Braz, em Beduído; a de S. Luís, no Fial e a de Santa Marta, no Amela (esta com intermitências).
E, — coisa curiosa mas lamentável! — de todas estas festas de capela, a que acabou por causa da ruína da sua ermida, foi exactamente a que se fazia no ponto mais interessante pela sua beleza panorâmica!
A capela de Paus está num ponto amplo e desafogado, mas de horizonte limitado; a de Beduído ocupa um lugar sem beleza nem vista; a do Fial, de uma pequenez que mal lá cabe o prior e o sacristão, domina um local de certo pitoresco, mas sem horizonte; a do Ameal está de ilharga para o lado melhor, que deita para o Vale do Vouga, e tem um espaço para arraial tão acanhado, que não se pode ali dar dois passos, com o aperto da multidão.
Do Cabeço de Santo Estevão, onde se elevava a capela, gozava-se um dos mais belos panoramas do maravilhoso Vale do Vouga — não pela sua extensão, mas principalmente pela variedade. Para poente, a vista alargava-se até aos campos de Eixo e S. João de Loure; para sul, estendiam-se as terras de Eirol, Requeixo, Fermentelos com a sua excepcional Pateira, e Travassô espreitando por sobre a sua encosta umbrosa, e Almear, e ainda a Fontinha espraiando-se à beira-rio e trepando pelo morro da feira dos dez; para nascente, Segadães, alapardada e espreitando através dos salgueirais e subindo até à Trofa, e seguidamente Pedaçães, Vouga e Lamas, vizinhos do histórico Marnel. E, ainda do nascente e no fundo de tudo, a serra do Caramulo, que eu não sei pintar por carência de pincel.
Tudo isto em semi-círculo, ficando Alquerubim dentro do cinto envolvente do rio, como um trono.
— Mas — poderão obtemperar-me — o cabeço ainda lá está com tudo o que o cerca, porque, felizmente, nenhum terramoto o arrazou.
Sim; isso é verdade. Mas o panorama é que ficou quase todo arrazado com o espesso biombo de eucaliptos que plantaram no cabeço, do lado de onde se gozava o melhor do panorama — plantação feita de forma abusiva, uma vez que era terreno baldio onde a Junta de Freguesia tinha o dever de intervir. Não o fez a tempo e horas e agora é tarde.
Quer dizer: o povo de Calvães deixou cair e arruinar-se a capela e permitiu, pela sua inércia, que desaparecesse um pitoresco e deslumbrante local, de onde se gozava um dos mais ricos panoramas do Vale do Vouga.
Não culpo ninguém nem este é lugar para isso. No entanto, seja-me lícito dizer que todos têm culpas no cartório: Tem-na quem se apossou do que era de todos; tem-na o povo do lugar, que não reagiu; tem-na a Junta de Freguesia, que não defendeu os interesses do povo que ela representava. Isto foi há muito tempo; a responsabilidade não cabe aos vivos ou a poucos vivos cabe.
Está nas mãos do povo de Calvães reparar, até onde a reparação pode chegar, o mal feito, reconstruindo a sua capela, para que seja restaurada a festa do Santo estevão e a sua formosa romaria, aproveitando o pouco que resta do magnífico panorama que se descortinava do alto do seu cabeço.
Se o fizer, e em minha vida, ainda prometo a Santo Estevão levar-lhe, lá acima, uma dádiva. Tenho fé que o milagroso santo me dará forças nas pernas para subir o cabeço e ir matar saudades ali, onde há mais de 50 anos não ponho os pés.
 (in Mensagem de 15 de janeiro de 1957)

António Augusto de Miranda

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