Ao ouvir, no dia 26 de Dezembro,
dia de Santo Estevão, estralejar os foguetes que alguns devotos lançaram ao ar
comemorando o dia do Santo, vieram-me à memória as lindas festas que
antigamente se realizavam no pitoresco outeiro do lugar de Calvães, o qual ainda
hoje é conhecido por “Cabeço de Santo Estevão”.
Uma festa, quando o ar livre
colabora nela, ganha em valor pelo grau panorâmico do sítio onde se realiza; e
quando esse sítio se alcandora numa elevação que domina um horizonte rico de
imagens e de cor, como a do Cabeço de Santo Estevão, numa romaria que ali se
realize assume aspectos de beleza rara, como a que se fazia ali na tarde do
domingo da festa, a qual era das mais atraentes que tenho conhecido nestas
redondezas. Dentro de um círculo de 12 quilómetros de raio, só o da Senhora do
Socorro, no Bico do Monte, cerca de Albergaria-a-Velha, consegue suplantar, em
beleza panorâmica, a romaria que outrora se realizava em honra de Santo
Estevão, no lugar de Calvães, desta freguesia.
Porque deixaram que a capela se
arruinasse, a ponto de desaparecer até ao último grão de caliça? Com uma
reparação a tempo, de pequena despesa, ter-se-ia evitado a ruína da capela e a
festa ainda ali se realizaria anualmente, como se realizam a de Nossa senhora
das Dores, em Paus; a de S. Braz, em Beduído; a de S. Luís, no Fial e a de
Santa Marta, no Amela (esta com intermitências).
E, — coisa curiosa mas
lamentável! — de todas estas festas de capela, a que acabou por causa da ruína
da sua ermida, foi exactamente a que se fazia no ponto mais interessante pela
sua beleza panorâmica!
A capela de Paus está num ponto
amplo e desafogado, mas de horizonte limitado; a de Beduído ocupa um lugar sem
beleza nem vista; a do Fial, de uma pequenez que mal lá cabe o prior e o
sacristão, domina um local de certo pitoresco, mas sem horizonte; a do Ameal
está de ilharga para o lado melhor, que deita para o Vale do Vouga, e tem um
espaço para arraial tão acanhado, que não se pode ali dar dois passos, com o
aperto da multidão.
Do Cabeço de Santo Estevão, onde
se elevava a capela, gozava-se um dos mais belos panoramas do maravilhoso Vale
do Vouga — não pela sua extensão, mas principalmente pela variedade. Para
poente, a vista alargava-se até aos campos de Eixo e S. João de Loure; para
sul, estendiam-se as terras de Eirol, Requeixo, Fermentelos com a sua
excepcional Pateira, e Travassô espreitando por sobre a sua encosta umbrosa, e
Almear, e ainda a Fontinha espraiando-se à beira-rio e trepando pelo morro da
feira dos dez; para nascente, Segadães, alapardada e espreitando através dos
salgueirais e subindo até à Trofa, e seguidamente Pedaçães, Vouga e Lamas,
vizinhos do histórico Marnel. E, ainda do nascente e no fundo de tudo, a serra
do Caramulo, que eu não sei pintar por carência de pincel.
Tudo isto em semi-círculo,
ficando Alquerubim dentro do cinto envolvente do rio, como um trono.
— Mas — poderão obtemperar-me — o
cabeço ainda lá está com tudo o que o cerca, porque, felizmente, nenhum
terramoto o arrazou.
Sim; isso é verdade. Mas o
panorama é que ficou quase todo arrazado com o espesso biombo de eucaliptos que
plantaram no cabeço, do lado de onde se gozava o melhor do panorama — plantação
feita de forma abusiva, uma vez que era terreno baldio onde a Junta de
Freguesia tinha o dever de intervir. Não o fez a tempo e horas e agora é tarde.
Quer dizer: o povo de Calvães
deixou cair e arruinar-se a capela e permitiu, pela sua inércia, que
desaparecesse um pitoresco e deslumbrante local, de onde se gozava um dos mais
ricos panoramas do Vale do Vouga.
Não culpo ninguém nem este é
lugar para isso. No entanto, seja-me lícito dizer que todos têm culpas no cartório: Tem-na quem se
apossou do que era de todos; tem-na o povo do lugar, que não reagiu; tem-na a
Junta de Freguesia, que não defendeu os interesses do povo que ela
representava. Isto foi há muito tempo; a responsabilidade não cabe aos vivos ou
a poucos vivos cabe.
Está nas mãos do povo de Calvães
reparar, até onde a reparação pode chegar, o mal feito, reconstruindo a sua
capela, para que seja restaurada a festa do Santo estevão e a sua formosa
romaria, aproveitando o pouco que resta do magnífico panorama que se
descortinava do alto do seu cabeço.
Se o fizer, e em minha vida,
ainda prometo a Santo Estevão levar-lhe, lá acima, uma dádiva. Tenho fé que o
milagroso santo me dará forças nas pernas para subir o cabeço e ir matar
saudades ali, onde há mais de 50 anos não ponho os pés.
(in Mensagem de 15 de janeiro de 1957)
António Augusto de Miranda
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