Recordando, julho de 1956


A propósito das habilidades do Coelho, prometi falar, num dos últimos números, do Larila. Era assim conhecido o artista de que vos vou falar, e eu nunca lhe soube o nome. Creio mesmo que poucos o saberiam e, de resto, ele não se zangava que o tratassem pela alcunha, cuja origem eu também ignoro. A alcunha era, por isso, o seu nome consagrado. Se tivesse sido pintor afamado, creio que assinaria os seus trabalhos com a alcunha.
Morava no alto de Beduído, já em território do lugar de Paus, desta freguesia, à beira do caminho que passa junto da actual vivenda pertencente a Silvério Xavier. Eu apenas me recordo de o ter visto pela primeira vez quando, com outros garotos, o procurei em sua casa por causa de um pião que a minha avó lhe encomendara e já lhe pagara adiantadamente e que ele nunca chegou a fazer.
Ainda me lembro, pela triste impressão que me deixou o incidente, de que, antes de atingirmos a casa do Larila, andava um bando de galinhas a pastar numa terra de semeadura, acompanhadas de um lindo galo, todo vaidoso com suas grandes foices a flutuar ao vento. Um de nós (para o que nos havia de dar?) teve esta amaldiçoada ideia:
— Vamos a ver quem acerta naquele galo?
Nenhum de nós, pela certa, era capaz, isoladamente, de atirar uma pedra ao galo. Mas já naquela idade se manifesta a psicologia da multidão. Aquilo foi morrão em barril de pólvora. Cada um com a sua pedra na mão, não me lembro quem foi o primeiro a atirar: apenas me recordo de que, quem acertou, mesmo em cheio, na cabeça do galo, fui eu, que nunca fui capaz de fazer mal a um bicho e fui sempre um desajeitado em pontaria. Quando atirei a pedra estava convencido de que não acertaria. Por isso sofri uma das maiores decepções da minha vida, quando vi que, atingido pela minha pedra, o pobre animal caía fulminado, agitando as lindas plumas no último estertor. Como todos nós fomos cúmplices uns dos outros neste delito, aquilo foi segredo que caiu no fundo de um poço. Só hoje o revelo, passados tantos anos — mais que os suficientes para a prescrição — não sabendo se ainda está vivo algum dos companheiros da tragédia, porque não me lembro de quem eles eram. Mas é muito possível que ainda haja algum, que deve ler estas linhas com saudade.
Chegados a casa do Larila, encontrámo-lo, sim, mas não a trabalhar, que ele era devoto do sétimo pecado mortal. Um cúmulo de habilidade à mercê de um cúmulo de preguiça. Lá admirei o tosco torno com que ele arredondava os célebres piões da sua lavra, os quais, postos a dormir, parecia que nunca mais acordavam, tal era o equilíbrio no arredondamento do bojo e a perfeição do bico, perfeito e bem centrado. O torno era constituído apenas por três peças: um pedal, de onde partia uma corda que se enrolava à volta do pau a tornear, ao qual imprimia movimento de vaivém a tensão de uma vara a que estava ligada a outra extremidade da corda.
Passados muitos anos, fez-me recordar este torno a apetrechagem rudimentar dos afamados ourives da Zambézia, os quais, com um tubo para soprar e pouco mais, executam as mais finas rendas filigranadas que só encontram paralelo nos mimos da ourivesaria portuense.
É bem certo que os verdadeiros artistas, em regra, não têm tino administrativo, são incapazes de pensar se no dia seguinte terão pão para comer. Verdadeiros idealistas, vivem na lua, talvez para estarem mais perto das estrelas, com as quais, em certa medida e em certo sentido, se assemelham. O Larila é um exemplo do que afirmo, e não vos admireis de eu o colocar na galeria dos génios. Era um génio inculto — infelizmente. Como a humanidade melhoraria se fosse possível descobrir e aproveitar, da massa anónima do vulgacho, todos os valores ocultos que existem nos seus arcanos, como os diamantes no seio da terra!
O génio não tem clima, nem latitude nem categoria social. Tanto nasce no palácio do rico como no tugúrio do pobre.
Até certo dia, o Larila tinha para mim, o mérito invulgar de ser o fabricante dos mais elegantes e perfeitos piões que ei vi na minha vida. Na minha ingenuidade infantil, isto era o bastante para ele merecer todo o culto da minha admiração. Mas um dia esta admiração subiu de ponto, quando, na véspera de S. João, ao chegar ao adro da igreja matriz, ao lusco-fusco, deparei com a Rosa de Eirol, que nesse tempo pouco mais era que rapariga, a entoar loas ao santo que estava colocado no cimo de um outeiro revestido de musgo, verde como o do prado, pelo qual se espalhavam ovelhas e cordeiros guardados por pastores, além de outras figuras de camponeses que povoavam o monte; e — oh! Maravilha — no fundo deste outeiro, um repuxo a esparzir água refrescante!
Um deslumbramento para os meus olhos atónitos!
Quando eu soube que tudo isto era obra do mestre Larila, a minha admiração pelo artista passou a ser sem limites.
Todas as figuras eram perfeitas, parecia que tinham recebido o sopro da vida ao serem modeladas no barro.
A acção do mestre Larila fez-se sentir no arranjo dos presépios do Natal e não sei se ainda haverá, nas figuras que embelezam o presépio da igreja, alguma reminiscência da obra admirável deste artista ignorado que, se tivesse sido bafejado pela sorte, decerto teria deixado, para a posteridade, um clarão imperecível do seu génio criador.
(in Mensagem de 15 de julho de 1956)

António Augusto de Miranda

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