A propósito das habilidades do
Coelho, prometi falar, num dos últimos números, do Larila. Era assim conhecido
o artista de que vos vou falar, e eu nunca lhe soube o nome. Creio mesmo que
poucos o saberiam e, de resto, ele não se zangava que o tratassem pela alcunha,
cuja origem eu também ignoro. A alcunha era, por isso, o seu nome consagrado.
Se tivesse sido pintor afamado, creio que assinaria os seus trabalhos com a
alcunha.
Morava no alto de Beduído, já em
território do lugar de Paus, desta freguesia, à beira do caminho que passa
junto da actual vivenda pertencente a Silvério Xavier. Eu apenas me recordo de
o ter visto pela primeira vez quando, com outros garotos, o procurei em sua
casa por causa de um pião que a minha avó lhe encomendara e já lhe pagara
adiantadamente e que ele nunca chegou a fazer.
Ainda me lembro, pela triste
impressão que me deixou o incidente, de que, antes de atingirmos a casa do
Larila, andava um bando de galinhas a pastar numa terra de semeadura,
acompanhadas de um lindo galo, todo vaidoso com suas grandes foices a flutuar
ao vento. Um de nós (para o que nos havia de dar?) teve esta amaldiçoada ideia:
— Vamos a ver quem acerta naquele
galo?
Nenhum de nós, pela certa, era
capaz, isoladamente, de atirar uma pedra ao galo. Mas já naquela idade se
manifesta a psicologia da multidão. Aquilo foi morrão em barril de pólvora.
Cada um com a sua pedra na mão, não me lembro quem foi o primeiro a atirar:
apenas me recordo de que, quem acertou, mesmo em cheio, na cabeça do galo, fui
eu, que nunca fui capaz de fazer mal a um bicho e fui sempre um desajeitado em
pontaria. Quando atirei a pedra estava convencido de que não acertaria. Por
isso sofri uma das maiores decepções da minha vida, quando vi que, atingido
pela minha pedra, o pobre animal caía fulminado, agitando as lindas plumas no
último estertor. Como todos nós fomos cúmplices uns dos outros neste delito,
aquilo foi segredo que caiu no fundo de um poço. Só hoje o revelo, passados
tantos anos — mais que os suficientes para a prescrição — não sabendo se ainda
está vivo algum dos companheiros da tragédia,
porque não me lembro de quem eles eram. Mas é muito possível que ainda haja
algum, que deve ler estas linhas com saudade.
Chegados a casa do Larila,
encontrámo-lo, sim, mas não a trabalhar, que ele era devoto do sétimo pecado
mortal. Um cúmulo de habilidade à mercê de um cúmulo de preguiça. Lá admirei o
tosco torno com que ele arredondava os célebres piões da sua lavra, os quais,
postos a dormir, parecia que nunca
mais acordavam, tal era o equilíbrio no arredondamento do bojo e a perfeição do
bico, perfeito e bem centrado. O torno era constituído apenas por três peças:
um pedal, de onde partia uma corda que se enrolava à volta do pau a tornear, ao
qual imprimia movimento de vaivém a tensão de uma vara a que estava ligada a
outra extremidade da corda.
Passados muitos anos, fez-me
recordar este torno a apetrechagem rudimentar dos afamados ourives da Zambézia,
os quais, com um tubo para soprar e pouco mais, executam as mais finas rendas
filigranadas que só encontram paralelo nos mimos da ourivesaria portuense.
É bem certo que os verdadeiros
artistas, em regra, não têm tino administrativo, são incapazes de pensar se no
dia seguinte terão pão para comer. Verdadeiros idealistas, vivem na lua, talvez
para estarem mais perto das estrelas, com as quais, em certa medida e em certo
sentido, se assemelham. O Larila é um exemplo do que afirmo, e não vos admireis
de eu o colocar na galeria dos génios. Era um génio inculto — infelizmente.
Como a humanidade melhoraria se fosse possível descobrir e aproveitar, da massa
anónima do vulgacho, todos os valores ocultos que existem nos seus arcanos,
como os diamantes no seio da terra!
O génio não tem clima, nem
latitude nem categoria social. Tanto nasce no palácio do rico como no tugúrio
do pobre.
Até certo dia, o Larila tinha
para mim, o mérito invulgar de ser o fabricante dos mais elegantes e perfeitos
piões que ei vi na minha vida. Na minha ingenuidade infantil, isto era o
bastante para ele merecer todo o culto da minha admiração. Mas um dia esta
admiração subiu de ponto, quando, na véspera de S. João, ao chegar ao adro da
igreja matriz, ao lusco-fusco, deparei com a Rosa de Eirol, que nesse tempo
pouco mais era que rapariga, a entoar loas ao santo que estava colocado no cimo
de um outeiro revestido de musgo, verde como o do prado, pelo qual se
espalhavam ovelhas e cordeiros guardados por pastores, além de outras figuras
de camponeses que povoavam o monte; e — oh! Maravilha — no fundo deste outeiro,
um repuxo a esparzir água refrescante!
Um deslumbramento para os meus
olhos atónitos!
Quando eu soube que tudo isto era
obra do mestre Larila, a minha admiração pelo artista passou a ser sem limites.
Todas as figuras eram perfeitas,
parecia que tinham recebido o sopro da vida ao serem modeladas no barro.
A acção do mestre Larila fez-se
sentir no arranjo dos presépios do Natal e não sei se ainda haverá, nas figuras
que embelezam o presépio da igreja, alguma reminiscência da obra admirável
deste artista ignorado que, se tivesse sido bafejado pela sorte, decerto teria
deixado, para a posteridade, um clarão imperecível do seu génio criador.
(in Mensagem de 15 de julho de
1956)
António Augusto de Miranda
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