Recordando, junho de 1956


A Páscoa, que tem início no domingo da Ressurreição, é, para mim. A festa mais brilhante da Igreja. É certo que a Ascensão é um dia tão santo, de tal regozijo, que, segundo a crença popular, nesse dia
Nem um passarinho
Pousa no seu ninho
e eu não compreendo por que razão tal dia passou a ser um dia santo “dispensado”.
A Páscoa é uma festa de alegria por sua natureza; e, por isso, no dia de Páscoa e, de uma maneira geral, no dia da visita pascal a todos os domicílios de freguesia, parece que tudo tem uma cor diferente. À celebração da Ressurreição do Senhor, feita pela Igreja, corresponde a ressurreição da natureza, que desperta do seu letargo hibernal.
Quem no Norte de Portugal, alguma vez não presenciou uma Páscoa, não pode fazer ideia da beleza daquele dia e da alegria que a tudo e todos inunda. Antes, esta alegria começava quando o sino, alvoroçado, anunciava, no sábado, a aleluia, e durava, como hoje ainda dura, até ao último momento do dia em que o prior (ou pároco, ou abade, ou reitor, conforme a designação que na região se dá ao sacerdote que tem a seu cargo a paróquia) vai a cada domicílio anunciar a Ressurreição do Senhor. E, na verdade, todos nos sentimos no meio de uma verdadeira ressurreição. Alegria imensa da natureza, aliada à alegria dos homens, e que, no dia de Páscoa, é uma alegria que tem qualquer coisa de etéreo. Para mim, quando eu era rapazinho, não havia som tão alegre como o da campainha anunciando a chegada do prior no dia de Páscoa, nem alacridade tão viva como a da sobrepeliz alvinitente esvoaçando ao vento, de que o prior ia revestido na visita pascal.
Na chapa da minha memória surgem, a propósito da Páscoa, os doces e saborosos folares que os padrinhos costumam dar aos afilhados e que são o encanto destes, mas pelos quais também dão o cavaco os padrinhos, os compadres e os amigos…
Os folares variam conforme as posses e a categoria de padrinhos e afilhados. Há-os desde o simples bolo de pão de trigo, sem açúcar, até aos doces, de massa fina e fofa, mas o essencial é que uns e outros levam ovos cozidos, sobrepostos e presos por correias feitas da própria massa.
Os bons folares da minha terra, os de massa açucarada, são qualquer coisa de especial, de extraordinário, e bem justo era que figurassem na lista das especialidades regionais de grande fama, como os seus vizinhos ovos moles de Aveiro, as arrufadas de Coimbra e o pão de Ló de Ovar e de Margaride. No entanto, apesar de ainda hoje serem muito saborosos, parece-me que já se não fazem como os que fabricava a Margarida Padeira, que era uma verdadeira artista da especialidade. Folar saído das suas mãos, era folar que nunca mais se esquecia. O segredo merecia ser desvendado e transmitido como o dos antigos mestres de artes e ofícios. A massa era tão fofa, tão leve, tão saborosa, tão bem caldeada a farinha com os ovos que nela entravam, que, ao saboreá-los, os folares feitos pela Padeira pareciam mais pão de ló que massa de folar.
Ai! Aonde as recordações me levam! Pieguices de velho… Não admira. Como duas vezes na vida somos meninos, eu estou integrado na idade em que era menino, que é aonde estas recordações me levam nas asas do sonho…
(in Mensagem de 15 de junho de 1956)

António Augusto de Miranda

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