(continuação da Mensagem de fevereiro de 1956)
Depois, à elevação, em que tudo
era silêncio, mas um silêncio majestoso, que as próprias coisas pareciam
respeitar, eu sentia que tudo se elevava para Deus; e, olhando os dois anjos,
eu, então – era uma certeza – via-os sorrir para mim, compassivamente, como
dois irmãos mais velhos que perdoam ao irmãozinho as traquinices que ele
pratica nos momentos mais solenes.
Depois, no fim da missa, eu ia
procurar o António Coelho, jardineiro e hortelão, porque eu era muito da
residência, onde, por intermédio de minha mãe, conquistei uma grande amiga, a
senhora Mariquinhas, a velha governanta do Prior, que me acarinhava e enchia de
mimos. Não pode haver pessoa de mais habilidade do que o Coelho. Por isso a
minha dedicação por ele não era só retribuição de simpatia, era também
admiração. Ele abria um poço em miniatura, vedava-o para que a água se não
infiltrasse e perdesse; construía uma bomba elevatória, depósito, conduto, e a
água corria pelo rêgo e ia regar uma pequenina várzea, construída a poucos
metros de distância. Para a cultura da várzea construía arados, charruas, com
que lavrava a terra; construía grades para pentear a terrado gramão e até
estaca-rios e motores a vento para elevar a água à flor da terra.
Contruía tudo! Tinha umas mãos
extraordinárias, maravilhosas. Só não construía bois para lavrar, porque os
bois mecânicos só serviriam de estorvo.
Aprendi muito com este rapaz,
mais velho do que eu meia dúzia de anos, e com ele apurei o gosto pelas coisas
da agricultura, da jardinagem e das mecânicas agrícolas. Mãos maravilhosas, a
rivalizarem com as do Coelho, mas para outro género de aptidões, foram as do
Larila, de quem falarei mais adiante.
Quando olho para o passal, que é
uma sombra do que foi e já não é do pároco; para a igreja, que não parece a
mesma; para o cemitério onde descansam todas as pessoas que admirei e
respeitei; quanto mais me afasto desse tempo, cada vez mais distante mas sempre
gravado na memória como se tudo fosse de ontem; quando dou balanço ao que fiz e
ao que andei e rememoro os dias de regozijo, os de dor, as ingratidões que tive
para Deus e para os homens e as que destes tenho recebido, os caminhos
transviados percorridos, a estrada lisa que perdera e reencontrei, o Deus da
minha juventude que, com o Bom Pastor, me reconduziu ao seu aprisco – não me
sinto só nem me vejo longe de onde parti. E, hoje, a missa, que eu compreendo
desde o Introito ad Alatare dei até
ao Ite, missa est, que começou por
ser um hábito adquirido no seio materno, é uma necessidade espiritual. Mesmo
que a não compreendesse, ela seria para mim o mesmo que é para os campónios da
minha aldeia, um dos quais me disse um dia:
– Preciso da missa todos os
domingos, como de rezar todos os dias, como de me confessar pelo menos uma vez
no ano. Preciso disto tudo, porque creio em Deus, a quem devemos agradecer a
vida e os bens que Ele nos deu. Sendo assim, como a forma de rezar é a que me
ensinaram e uma das formas de rezar é assistir à missa acompanhando o ofício
divino, eu vou a ela todos os domingos, embora não compreenda o que o padre
diz. Isto não tem importância. Sei o que ela representa – o mistério da
Redenção, coisa muito superior à minha inteligência, mas que eu sinto como
coisa sublime. É quanto me basta. De tudo o que nos rodeia, e com que lidamos,
há muitas coisas que eu também não compreendo, mas que não posso deixar de
admirar como obra de Deus.
Foi o que me disse, um dia, sobre
estas coisas transcendentes, um aldeão da minha terra, na sua alta filosofia,
expressa por palavras menos apuradas, que pode servir de lição a muitos
filósofos da cidade.
(in Mensagem 15 de março de 1956)
António Augusto de Miranda
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