Recordando, abril de 1956


É admirável a forma como, passado mais de meio século, as pessoas, as coisas e os factos que encheram o pequeno círculo do meu horizonte, revivem na minha memória como se eu os estivesse vendo e ouvindo, como, se os estivesse presenciando! É bem certo que o cérebro de uma criança é uma chapa fotográfica; as impressões que ali se gravam só o aniquilamento da chapa as faz desaparecer.
Desses acontecimentos, destacam-se, em primeiro plano, os do ciclo festivo do Natal, que para as crianças tem um sabor especial e ainda hoje, com pequenas variantes, se repetem.
Vem, primeiramente, a ceia de 24 para 25 de Dezembro, seguida da missa do galo à meia noite. Era, como hoje, uma noite de recordações, alegria e tristeza, em que se reuniam no lar da família os que estavam perto, festejando a alegria de se verem juntos e recordando com amarga saudade os que andavam longe, não esquecendo (recordação por vezes salgada no deslizar de uma lágrima) os que haviam partido para a grande viagem de que se não volta mais. Risos e lágrimas, alegria e tristeza, flores e abrolhos juncando a mesa numa atmosfera de suavíssima ternura, nessa noite em que, como escreveu Ramalho Ortigão ao descrever o Natal do Minho, “tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava ali reunido numa doce paz”.
A fogueira ardia na lareira, espargindo um farto e hospitaleiro calor, sob a presidência de robusto cepo, especialmente guardado para esta noite, a fim de receber, no batismo do fogo, o poder miraculoso de afugentar as trovoadas, preservando a casa dos malefícios. Para isso, apenas crestado, era guardado cuidadosamente. Era neste ambiente de aconchego e agasalho, enquanto a tempestade rugia lá fora fustigando as árvores e enregelando tudo, que se auferia a ceia, a qual, assim, neste ambiente espiritual, tinha um sabor diferente.
Depois da ceia, era a missa do galo, que depois caiu em desuso, e só, que eu saiba, foi restabelecida no tempo do actual pároco, dotado de um dinamismo, de um zelo e dedicação às coisas do culto e à vida da igreja, excepcionais.
Não havia sono que me vencesse, desperto como estava pela esperança de ouvir cantar o galo na igreja. Mas nunca consegui ouvir. Minha mãe alegava que o galo não cantava para não acordar o Menino Jesus, que estava a dormir.
Oh! O Menino Jesus! Que ternura me causava o pequenino bambino deitado no presépio, quando o padre o apresentava nos braços aos ósculos dos fieis. Eu tinha a impressão de que o Menino me sorria, contente por me ver ali.
Depois do beijar do Menino era o leilão das prendas, oferecidas ao Menino Jesus, cujo produto, como ainda hoje, reverte a favor das necessidades da igreja. Era pregoeiro o velho Pinó, de quem poucos haverá que se lembrem. Colocava-se em cima de um muro do adro, e dali punha as ofertas em arrematação. Isto se fazia no dia de Natal, de Ano Bom e dos Reis. Actualmente, usa-se organizar um cortejo de oferendas, em dia marcado pelo pároco, em regra no 1.º de Janeiro. Algumas dezenas de raparigas, de costumes regionais, conduzindo tabuleiros repletos de produtos, organizam um cortejo, a que também se associa uma ou outra carrada de lenha, ou outros produtos agrícolas; há o encontro com os três reis magos, perto do palácio do rei Herodes; e o acontecimento assume feição tão espectacular, que a ele acorrem muitas centenas de pessoas daqui e das redondezas. Tudo converge depois para o adro, onde então se realiza o leilão das oferendas, tal qual como antigamente.

António Augusto de Miranda

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