É admirável a forma como, passado
mais de meio século, as pessoas, as coisas e os factos que encheram o pequeno
círculo do meu horizonte, revivem na minha memória como se eu os estivesse
vendo e ouvindo, como, se os estivesse presenciando! É bem certo que o cérebro
de uma criança é uma chapa fotográfica; as impressões que ali se gravam só o
aniquilamento da chapa as faz desaparecer.
Desses acontecimentos,
destacam-se, em primeiro plano, os do ciclo festivo do Natal, que para as
crianças tem um sabor especial e ainda hoje, com pequenas variantes, se
repetem.
Vem, primeiramente, a ceia de 24
para 25 de Dezembro, seguida da missa do galo à meia noite. Era, como hoje, uma
noite de recordações, alegria e tristeza, em que se reuniam no lar da família
os que estavam perto, festejando a alegria de se verem juntos e recordando com
amarga saudade os que andavam longe, não esquecendo (recordação por vezes
salgada no deslizar de uma lágrima) os que haviam partido para a grande viagem
de que se não volta mais. Risos e lágrimas, alegria e tristeza, flores e
abrolhos juncando a mesa numa atmosfera de suavíssima ternura, nessa noite em
que, como escreveu Ramalho Ortigão ao descrever o Natal do Minho, “tudo o que
há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a
família, estava ali reunido numa doce paz”.
A fogueira ardia na lareira,
espargindo um farto e hospitaleiro calor, sob a presidência de robusto cepo,
especialmente guardado para esta noite, a fim de receber, no batismo do fogo, o
poder miraculoso de afugentar as trovoadas, preservando a casa dos malefícios.
Para isso, apenas crestado, era guardado cuidadosamente. Era neste ambiente de
aconchego e agasalho, enquanto a tempestade rugia lá fora fustigando as árvores
e enregelando tudo, que se auferia a ceia, a qual, assim, neste ambiente
espiritual, tinha um sabor diferente.
Depois da ceia, era a missa do
galo, que depois caiu em desuso, e só, que eu saiba, foi restabelecida no tempo
do actual pároco, dotado de um dinamismo, de um zelo e dedicação às coisas do
culto e à vida da igreja, excepcionais.
Não havia sono que me vencesse,
desperto como estava pela esperança de ouvir cantar o galo na igreja. Mas nunca
consegui ouvir. Minha mãe alegava que o galo não cantava para não acordar o
Menino Jesus, que estava a dormir.
Oh! O Menino Jesus! Que ternura
me causava o pequenino bambino deitado no presépio, quando o padre o
apresentava nos braços aos ósculos dos fieis. Eu tinha a impressão de que o
Menino me sorria, contente por me ver ali.
Depois do beijar do Menino era o
leilão das prendas, oferecidas ao Menino Jesus, cujo produto, como ainda hoje,
reverte a favor das necessidades da igreja. Era pregoeiro o velho Pinó, de quem
poucos haverá que se lembrem. Colocava-se em cima de um muro do adro, e dali
punha as ofertas em arrematação. Isto se fazia no dia de Natal, de Ano Bom e
dos Reis. Actualmente, usa-se organizar um cortejo de oferendas, em dia marcado
pelo pároco, em regra no 1.º de Janeiro. Algumas dezenas de raparigas, de
costumes regionais, conduzindo tabuleiros repletos de produtos, organizam um
cortejo, a que também se associa uma ou outra carrada de lenha, ou outros
produtos agrícolas; há o encontro com os três reis magos, perto do palácio do
rei Herodes; e o acontecimento assume feição tão espectacular, que a ele
acorrem muitas centenas de pessoas daqui e das redondezas. Tudo converge depois
para o adro, onde então se realiza o leilão das oferendas, tal qual como
antigamente.
António Augusto de Miranda
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