Recordando, janeiro de 1961


Negros e Brancos
Durante a parte da vida que passei no Ultramar, gasta numa profissão particularmente adequada à observação e estudo da alma humana, tive oportunidade de constatar que há negros com alma branca e brancos com alma negra, nada tendo a cor da pele com as qualidades do seu dono. Pode haver diferenças das qualidades entre os negros, como as há entre os brancos, e podem notar-se diferenças de qualidades entre raças; mas essas diferenças resultam de causas que, combatidas ou eliminadas, necessàriamente modificam as qualidades dos indivíduos, que assim tendem a uniformizar-se no mesmo padrão humano, com os mesmos defeitos e as mesmas virtudes. Seria um nunca acabar citar factos que me ocorrem à memória, nos quais os negros manifestavam os seus sentimentos quando postos à prova nas suas relações com os brancos.
Creio que foram os portugueses quem ensinou ao mundo que os negros são iguais aos brancos. Devem ter sido, uma vez que fomos nós quem primeiro os tratou como homens. E onde se lê negros, podemos ler amarelos e pardos, todos os homens de outras raças que fomos os primeiros a saber e a ensinar ao mundo onde moravam.
Anda tudo às aranhas, lá nos aerópagos internacionais, por não atinarem com a razão por que Portugal não tem nas províncias ultramarinas os problemas que afligem outros povos mais poderosos. No entanto, não há segredos nem transcendências no caso. É tudo uma questão de coração e consciência: coração, para tratar os homens de outras raças como homens que são, respeitando a sua personalidade, procurando elevá-los até nós sem violência física nem moral; consciência, para os julgar com justiça. É admirável a ideia que o mais atrasado homem da selva faz da justiça e o respeito que nutre pelo administrador da justiça que a emprega a tempo na justa medida.
O homem é um ser complexo, igual em todas as longitudes e latitudes, detentor dos caracteres que herdou da sua origem divina, exclusivos da criatura humana e que constituem em cada ser a sua personalidade. É esta personalidade que, em todas as circunstâncias, é preciso respeitar, e nisto Portugal é mestre. Nisto reside o seu sistema de civilizar, que não é segredo, como muitos cuidam, mas simples intuição, modo de ser.
Eu talvez seja — involuntàriamente, claro — parcial no que vou dizer, decerto atraído pelo imã profissional: tenho para mim que a melhor parte da nossa acção civilizadora tem sido a aplicação das nossas humanas leis nas questões com os nativos, seja essa aplicação exercida pela autoridade judicial, seja por quem tem por função contactar com nativos.
Fixei para sempre o seguinte edificante exemplo de elevado civismo dado pelo Alto Comissário de Moçambique, que era ao tempo o Dr. Manuel de Brito Camacho, que foi ministro quando da implantação da República e um dos principais elementos da propaganda republicana que concorreram para a implantação do regime, e que governou a província de Moçambique durante dois anos, por volta de 1921 e 1922.
Havia em Lourenço Marques um jornalista, de nome José Albazini, de raça negra, homem inteligente que, como era natural, exercia uma grande influência no meio indígena por via do jornal que dirigia.
Um dia, o Alto Comissário demorou-se um pouco mais do que contava, numa conferência com diversos chefes de serviço e, em certa altura, olhando o relógio, levantou-se e disse:
— Meus senhores: tenho uma audiência marcada ao senhor Albazini e já deu a hora designada para isso. Fica esta reunião adiada para outro dia, a designar.
E foi atender o jornalista, cuja cor de pele não fazia desmerecer o conceito em que o tinha o Alto Comissário da República.
Isto passou-se há perto de 40 anos.
 (in Mensagem de 15 de janeiro de 1961)
António Augusto de Miranda

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