Negros e Brancos
Durante a parte da vida que
passei no Ultramar, gasta numa profissão particularmente adequada à observação
e estudo da alma humana, tive oportunidade de constatar que há negros com alma
branca e brancos com alma negra, nada tendo a cor da pele com as qualidades do
seu dono. Pode haver diferenças das qualidades entre os negros, como as há
entre os brancos, e podem notar-se diferenças de qualidades entre raças; mas
essas diferenças resultam de causas que, combatidas ou eliminadas,
necessàriamente modificam as qualidades dos indivíduos, que assim tendem a uniformizar-se
no mesmo padrão humano, com os mesmos defeitos e as mesmas virtudes. Seria um
nunca acabar citar factos que me ocorrem à memória, nos quais os negros
manifestavam os seus sentimentos quando postos à prova nas suas relações com os
brancos.
Creio que foram os portugueses
quem ensinou ao mundo que os negros são iguais aos brancos. Devem ter sido, uma
vez que fomos nós quem primeiro os tratou como homens. E onde se lê negros,
podemos ler amarelos e pardos, todos os homens de outras raças
que fomos os primeiros a saber e a ensinar ao mundo onde moravam.
Anda tudo às aranhas, lá nos
aerópagos internacionais, por não atinarem com a razão por que Portugal não tem
nas províncias ultramarinas os problemas que afligem outros povos mais
poderosos. No entanto, não há segredos nem transcendências no caso. É tudo uma
questão de coração e consciência: coração, para tratar os homens de outras
raças como homens que são, respeitando a sua personalidade, procurando
elevá-los até nós sem violência física nem moral; consciência, para os julgar
com justiça. É admirável a ideia que o mais atrasado homem da selva faz da
justiça e o respeito que nutre pelo administrador da justiça que a emprega a
tempo na justa medida.
O homem é um ser complexo, igual
em todas as longitudes e latitudes, detentor dos caracteres que herdou da sua
origem divina, exclusivos da criatura humana e que constituem em cada ser a sua
personalidade. É esta personalidade que, em todas as circunstâncias, é preciso
respeitar, e nisto Portugal é mestre. Nisto reside o seu sistema de civilizar,
que não é segredo, como muitos cuidam, mas simples intuição, modo de ser.
Eu talvez seja —
involuntàriamente, claro — parcial no que vou dizer, decerto atraído pelo imã
profissional: tenho para mim que a melhor parte da nossa acção civilizadora tem
sido a aplicação das nossas humanas leis nas questões com os nativos, seja essa
aplicação exercida pela autoridade judicial, seja por quem tem por função
contactar com nativos.
Fixei para sempre o seguinte
edificante exemplo de elevado civismo dado pelo Alto Comissário de Moçambique,
que era ao tempo o Dr. Manuel de Brito Camacho, que foi ministro quando da
implantação da República e um dos principais elementos da propaganda
republicana que concorreram para a implantação do regime, e que governou a
província de Moçambique durante dois anos, por volta de 1921 e 1922.
Havia em Lourenço Marques um
jornalista, de nome José Albazini, de raça negra, homem inteligente que, como
era natural, exercia uma grande influência no meio indígena por via do jornal
que dirigia.
Um dia, o Alto Comissário
demorou-se um pouco mais do que contava, numa conferência com diversos chefes
de serviço e, em certa altura, olhando o relógio, levantou-se e disse:
— Meus senhores: tenho uma
audiência marcada ao senhor Albazini e já deu a hora designada para isso. Fica
esta reunião adiada para outro dia, a designar.
E foi atender o jornalista, cuja
cor de pele não fazia desmerecer o conceito em que o tinha o Alto Comissário da
República.
Isto passou-se há perto de 40
anos.
(in Mensagem de 15 de janeiro de 1961)
António Augusto de Miranda
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