Recordando, outubro de 1959


Nomeado Conservador do Registo Predial na comarca de Tete (os conservadores do Ultramar são, a par dos delegados, candidatos aos lugares de juiz de direito), fui ao Ministério das Colónias (até há pouco tempo atrás, eram assim designadas as províncias ultramarinas) a fim de colher informações sobre o caminho a seguir para chegar àquela comarca sertaneja, bem como as formalidades burocráticas a cumprir para obter a requisição da passagem para mim, minha mulher e o filho primogénito e único nessa data, o qual tinha alguns meses de idade.
Entendi — e creio que entendi muito bem — que o Ministério das Colónias era a entidade que melhor me podia informar. Sobre as formalidades a seguir, assim era, e incompreensível seria que assim não fosse. Quanto ao caminho… creio que aquele departamento do Estado era quem menos sabia do assunto. Que devia seguir por mar, em navio de alto bordo, até à Beira — e até aqui estava certo. Da Beira para Tete seguiria de caminho de ferro até Macequece, e de ali para Tete tinha muitos dias de machila, através do Báruè.
Fiquei desapontado — não por mim, mas pelas pessoas de família que me iriam acompanhar. A viagem, da Beira para Tete, afigurava-se-me um tanto tormentosa, e eu já desanimava de pedir a passagem. Mas, entretanto, encontrei pessoa amiga melhor informada, que me deu os esclarecimentos que me sossegaram. E aquele amigo, a propósito, contou-me que, não havia muito tempo, uma determinação ministerial ordenava que o Pároco de Tete celebrasse a Missa da manhã na igreja daquela vila e seguisse depois para o Zumbo, onde deveria dizer, dentro de poucas horas, a Missa do dia. Ora o Zumbo fica a 400 quilómetros de Tete… e naquele tempo, por mais depressa que se fizesse a viagem, nunca podia ser em menos de dez dias.
Verdade ou anedota?
Se é anedota, ela foi urdida para caracterizar a ignorância burocrática do ministério daquele tempo em relação aos assuntos da sua competência.
Embarquei no antigo vapor «Moçambique», de seis mil e tal toneladas, considerado o melhor e maior navio para passageiros naquela época. Saímos de Lisboa em 20 de Abril de 1920, em viagem directa para a cidade do Cabo, gastando nesta tirada 18 dias. Foi por esta razão que, não tocando o navio no Funchal e outros portos da carreira da África Ocidental (S. Tomé, Luanda, Lobito e Moçâmedes), eu só vim a conhecer os dois últimos em 1923, quando tomei o navio alemão em Lourenço Marques com destino a Moçâmedes, como contei na crónica anterior.
Isto de passar 18 dias no mar, só vendo água e céu (pois em todo o percurso apenas avistámos terra das Canárias, ao largo das quais passámos) torna a viagem deveras monótona. Durante o dia ainda se vai perscrutando o horizonte, à procura de uma baleia, golfinho (toninha) ou peixes voadores. As toninhas gostam de acompanhar o navio durante um pedaço de percurso e têm um nadar interessante, arqueando o dorso e mergulhando, semelhando uma brincadeira pegada. Os peixes voadores, que aparentam o tamanho da sardinha, voam em cardumes numerosos, mas voos curtos, como toalhas de espuma que se diluem sobre as ondas. Têm umas barbatanas peitorais que lhes permitem elevar-se fora da água e deslocar-se alguns metros, dando a ideia de voar, de onde o chamar-se-lhes voadores.
Chegada a noite, o tempo custa mais a passar a bordo, a quem como eu, de jogos de cartas não vai além do burro e do mafarrico, que são jogos de crianças, e de bebidas pouco vai além da água bemfazeja. Uma boa parte dos passageiros gastam o tempo metidos no «bar», jogando e beberricando.
Já saturado da viagem, foi com intenso júbilo que, ao décimo oitavo dia, de madrugada, avistei, pela vigia do camarote, as luzes do porto da cidade do Cabo.
Naquele tempo, a Cidade do Cabo tinha uma população de cerca de 150.000 almas, e jazia na base da Montanha da Mesa, a montanha que se recorta no Horizonte semelhando uma enorme máscara vista de perfil, à qual se refere o nosso épico quando descreve a figura horrenda do Gigante Adamastor. Mas muitas vezes ela não se vê, encoberta por uma nuvem. Está a mesa posta, com uma alvíssima toalha a cobri-la, para usar a figura que os ingleses empregam.
Outras vezes, a nuvem paira na base da montanha, vendo-se desta só a parte superior, parecendo uma construção suspensa no espaço. Fenómeno semelhante se dá no Monte da Penha, em Macau, quando a névoa deixa a descoberto sòmente o cume da elevação, com a elegante capela de Nossa Senhora da Penha pousada sobre a nuvem. Belo!
A cidade do Cabo tem, mais ou menos, acompanhado o ritmo do desenvolvimento das restantes cidades da União Sul-Africana, à excepção de Joanesburgo, que é um fenómeno de crescimento quase tão intenso como o de S. Paulo (Brasil), pois festejou há pouco os seus 50 anos de fundação e tem hoje uma população muito superior a um milhão de habitantes.
Este vai longe e não quero açambarcar o espaço do jornalzinho. No próximo mês continuaremos a viagem para Lourenço Marques.
 (in Mensagem de 15 de outubro de 1959)
António Augusto de Miranda

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