Nomeado Conservador do Registo
Predial na comarca de Tete (os conservadores do Ultramar são, a par dos
delegados, candidatos aos lugares de juiz de direito), fui ao Ministério das
Colónias (até há pouco tempo atrás, eram assim designadas as províncias
ultramarinas) a fim de colher informações sobre o caminho a seguir para chegar
àquela comarca sertaneja, bem como as formalidades burocráticas a cumprir para
obter a requisição da passagem para mim, minha mulher e o filho primogénito e
único nessa data, o qual tinha alguns meses de idade.
Entendi — e creio que entendi
muito bem — que o Ministério das Colónias era a entidade que melhor me podia
informar. Sobre as formalidades a seguir, assim era, e incompreensível seria
que assim não fosse. Quanto ao caminho… creio que aquele departamento do Estado
era quem menos sabia do assunto. Que devia seguir por mar, em navio de alto
bordo, até à Beira — e até aqui estava certo. Da Beira para Tete seguiria de
caminho de ferro até Macequece, e de ali para Tete tinha muitos dias de
machila, através do Báruè.
Fiquei desapontado — não por mim,
mas pelas pessoas de família que me iriam acompanhar. A viagem, da Beira para
Tete, afigurava-se-me um tanto tormentosa, e eu já desanimava de pedir a
passagem. Mas, entretanto, encontrei pessoa amiga melhor informada, que me deu
os esclarecimentos que me sossegaram. E aquele amigo, a propósito, contou-me
que, não havia muito tempo, uma determinação ministerial ordenava que o Pároco
de Tete celebrasse a Missa da manhã na igreja daquela vila e seguisse depois
para o Zumbo, onde deveria dizer, dentro de poucas horas, a Missa do dia. Ora o
Zumbo fica a 400 quilómetros de Tete… e naquele tempo, por mais depressa que se
fizesse a viagem, nunca podia ser em menos de dez dias.
Verdade ou anedota?
Se é anedota, ela foi urdida para
caracterizar a ignorância burocrática do ministério daquele tempo em relação
aos assuntos da sua competência.
Embarquei no antigo vapor
«Moçambique», de seis mil e tal toneladas, considerado o melhor e maior navio
para passageiros naquela época. Saímos de Lisboa em 20 de Abril de 1920, em
viagem directa para a cidade do Cabo, gastando nesta tirada 18 dias. Foi por
esta razão que, não tocando o navio no Funchal e outros portos da carreira da
África Ocidental (S. Tomé, Luanda, Lobito e Moçâmedes), eu só vim a conhecer os
dois últimos em 1923, quando tomei o navio alemão em Lourenço Marques com
destino a Moçâmedes, como contei na crónica anterior.
Isto de passar 18 dias no mar, só
vendo água e céu (pois em todo o percurso apenas avistámos terra das Canárias,
ao largo das quais passámos) torna a viagem deveras monótona. Durante o dia
ainda se vai perscrutando o horizonte, à procura de uma baleia, golfinho
(toninha) ou peixes voadores. As toninhas gostam de acompanhar o navio durante
um pedaço de percurso e têm um nadar interessante, arqueando o dorso e
mergulhando, semelhando uma brincadeira pegada. Os peixes voadores, que
aparentam o tamanho da sardinha, voam em cardumes numerosos, mas voos curtos,
como toalhas de espuma que se diluem sobre as ondas. Têm umas barbatanas
peitorais que lhes permitem elevar-se fora da água e deslocar-se alguns metros,
dando a ideia de voar, de onde o chamar-se-lhes voadores.
Chegada a noite, o tempo custa
mais a passar a bordo, a quem como eu, de jogos de cartas não vai além do burro e do mafarrico, que são jogos de crianças, e de bebidas pouco vai além
da água bemfazeja. Uma boa parte dos
passageiros gastam o tempo metidos no «bar», jogando e beberricando.
Já saturado da viagem, foi com
intenso júbilo que, ao décimo oitavo dia, de madrugada, avistei, pela vigia do
camarote, as luzes do porto da cidade do Cabo.
Naquele tempo, a Cidade do Cabo
tinha uma população de cerca de 150.000 almas, e jazia na base da Montanha da
Mesa, a montanha que se recorta no Horizonte semelhando uma enorme máscara
vista de perfil, à qual se refere o nosso épico quando descreve a figura
horrenda do Gigante Adamastor. Mas muitas vezes ela não se vê, encoberta por
uma nuvem. Está a mesa posta, com uma alvíssima toalha a cobri-la, para usar a
figura que os ingleses empregam.
Outras vezes, a nuvem paira na
base da montanha, vendo-se desta só a parte superior, parecendo uma construção
suspensa no espaço. Fenómeno semelhante se dá no Monte da Penha, em Macau,
quando a névoa deixa a descoberto sòmente o cume da elevação, com a elegante
capela de Nossa Senhora da Penha pousada sobre a nuvem. Belo!
A cidade do Cabo tem, mais ou
menos, acompanhado o ritmo do desenvolvimento das restantes cidades da União
Sul-Africana, à excepção de Joanesburgo, que é um fenómeno de crescimento quase
tão intenso como o de S. Paulo (Brasil), pois festejou há pouco os seus 50 anos
de fundação e tem hoje uma população muito superior a um milhão de habitantes.
Este vai longe e não quero
açambarcar o espaço do jornalzinho. No próximo mês continuaremos a viagem para
Lourenço Marques.
(in Mensagem de 15 de outubro de 1959)
António Augusto de Miranda
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