Recordando. março de 1958


O entremez era o mais interessante número do arraial antigo. Digo antigo porque suponho ter perdido a sua voga.
Em Alquerubim, onde o entremez nunca faltava era na véspera da festa de S. Luís, no lugar do Fial, desta freguesia, creio que também se cultivou nas festas de alguns dos outros lugares, mas não posso asseverá-lo.
O Fial é um lugar que, pela sua disposição ao longo do caminho sua espinha dorsal, se divide em duas partes: Fial de Baixo e Fial de Cima. A capela de S. Luís, pequenina que nela pouco mais cabe que o reverendo que celebra a missa e o seu acólito, e meia dúzia de fiéis, fica quase á entrada do Fial de Baixo. Tem pela rectaguarda um morro povoado de pinhais e pela frente um lindo carvalhal com clareiras ricas de sombra que, na época estival, são uma delícia para se saborear um pic-nic. Ao lado da capela existe uma pequena esplanada, que é aproveitada para os coretos em que as bandas de música executam os seus programas, e, naquele tempo, também para o palanque do entremez.
O entremez constava de um drama ou de uma comédia, e às vezes de uma tragédia. Quase sempre o drama e, na maior parte das vezes a tragédia, redundava em comédia. É por demais conhecida aquela passagem da «Inez de Castro», levada em qualquer entremez de não sei que freguesia dos arredores, em que um dos personagens diz, muito compenetrado do seu papel, apontando para o cadáver de Inez de Castro:
— «Eis ali Inez prostrada com sete facadelas que lhe deu o Pacheco!»
Eram actores destes entremezes António Silva, simpático e dinâmico habitante do lugar de Fontes, e que durante muitos anos exerceu, com aprumo, as funções de regedor da freguesia; e César João da Silva (se não erro no nome), aquela figura de pequena estatura que não há muitos anos faleceu já de provecta idade, que foi carpinteiro e trabalhou enquanto pôde e acabou vivendo do que algumas almas caridosas lhe davam. E outras de que me não recordo (porque isto passava-se quando eu era rapazinho) constituíam a camada mais aproveitável da população, da qual saía o elenco para as representações dos entremezes.
O palanque era um estrado de tábuas pregadas (às vezes bem mal pregadas) sobre um esqueleto de barrotes. As divisórias eram feitas por esteiras e por panos de chita, e os compartimentos era o que havia de mais reduzido: o palco, com uma área de uns escassos quatro ou cinco metros de lado, e um corredor rodeando o palco, onde os actores aguardavam as entradas e aonde se acolhiam as saídas.
As características e mudanças de vestuário ou eram em casa de cada um, de onde em regra saía já preparado para entrar em cena, ou numa casa vizinha.
De uma vez, estava-se numa cena de um drama, em que só havia dois personagens: um rapaz que pretendia convencer com palavras aliciantes uma rapariga, que resistia às suas arremetidas, mas não queria levantar a voz para não dar alarme que podia compromete-la por se encontrar a sós com ele naquele sítio.
O rapaz a cada tirada discursiva, dava uma avançada para ela, que já não tinha espaço para fugir. Ele, já irritado com tamanha resistência, dá uma violenta sapatada no soalho ao mesmo tempo que estendia para ela os braços possantes. Mas, nesse momento decisivo, sente uma violenta pancada no crâneo, e cai redondo no meio do palco, enquanto a rapariga se escapa pela porta do fundo, dando um grito.
Grande burburinho no palco e na plateia, que se estendia pelo arraial, tudo misturado com as mais estridentes gargalhadas.
Fôra uma das tábuas que, calcada violentamente em uma das extremidades, se levantou pela outra, indo bater na cabeça do tentador e livrando a rapariga daquela situação, dando a impressão de uma cena em que na realidade a providência acorre em defesa do fraco contra o forte.
Parece que nunca, em palcos de entremez, se representou coisa de tanto agrado para a massa dos espectadores.
(in Mensagem de 15 de março de 1958)
António Augusto de Miranda

Sem comentários: