O entremez era o mais
interessante número do arraial antigo. Digo antigo
porque suponho ter perdido a sua voga.
Em Alquerubim, onde o entremez
nunca faltava era na véspera da festa de S. Luís, no lugar do Fial, desta
freguesia, creio que também se cultivou nas festas de alguns dos outros
lugares, mas não posso asseverá-lo.
O Fial é um lugar que, pela sua
disposição ao longo do caminho sua espinha dorsal, se divide em duas partes:
Fial de Baixo e Fial de Cima. A capela de S. Luís, pequenina que nela pouco
mais cabe que o reverendo que celebra a missa e o seu acólito, e meia dúzia de
fiéis, fica quase á entrada do Fial de Baixo. Tem pela rectaguarda um morro
povoado de pinhais e pela frente um lindo carvalhal com clareiras ricas de
sombra que, na época estival, são uma delícia para se saborear um pic-nic. Ao
lado da capela existe uma pequena esplanada, que é aproveitada para os coretos
em que as bandas de música executam os seus programas, e, naquele tempo, também
para o palanque do entremez.
O entremez constava de um drama
ou de uma comédia, e às vezes de uma tragédia. Quase sempre o drama e, na maior
parte das vezes a tragédia, redundava em comédia. É por demais conhecida aquela
passagem da «Inez de Castro», levada em qualquer entremez de não sei que
freguesia dos arredores, em que um dos personagens diz, muito compenetrado do
seu papel, apontando para o cadáver de Inez de Castro:
— «Eis ali Inez prostrada com
sete facadelas que lhe deu o Pacheco!»
Eram actores destes entremezes
António Silva, simpático e dinâmico habitante do lugar de Fontes, e que durante
muitos anos exerceu, com aprumo, as funções de regedor da freguesia; e César
João da Silva (se não erro no nome), aquela figura de pequena estatura que não
há muitos anos faleceu já de provecta idade, que foi carpinteiro e trabalhou
enquanto pôde e acabou vivendo do que algumas almas caridosas lhe davam. E
outras de que me não recordo (porque isto passava-se quando eu era rapazinho)
constituíam a camada mais aproveitável da população, da qual saía o elenco para
as representações dos entremezes.
O palanque era um estrado de
tábuas pregadas (às vezes bem mal pregadas) sobre um esqueleto de barrotes. As
divisórias eram feitas por esteiras e por panos de chita, e os compartimentos
era o que havia de mais reduzido: o palco, com uma área de uns escassos quatro
ou cinco metros de lado, e um corredor rodeando o palco, onde os actores
aguardavam as entradas e aonde se acolhiam as saídas.
As características e mudanças de
vestuário ou eram em casa de cada um, de onde em regra saía já preparado para
entrar em cena, ou numa casa vizinha.
De uma vez, estava-se numa cena
de um drama, em que só havia dois personagens: um rapaz que pretendia convencer
com palavras aliciantes uma rapariga, que resistia às suas arremetidas, mas não
queria levantar a voz para não dar alarme que podia compromete-la por se
encontrar a sós com ele naquele sítio.
O rapaz a cada tirada discursiva,
dava uma avançada para ela, que já não tinha espaço para fugir. Ele, já
irritado com tamanha resistência, dá uma violenta sapatada no soalho ao mesmo
tempo que estendia para ela os braços possantes. Mas, nesse momento decisivo,
sente uma violenta pancada no crâneo, e cai redondo no meio do palco, enquanto
a rapariga se escapa pela porta do fundo, dando um grito.
Grande burburinho no palco e na
plateia, que se estendia pelo arraial, tudo misturado com as mais estridentes
gargalhadas.
Fôra uma das tábuas que, calcada
violentamente em uma das extremidades, se levantou pela outra, indo bater na
cabeça do tentador e livrando a rapariga daquela situação, dando a impressão de
uma cena em que na realidade a providência acorre em defesa do fraco contra o
forte.
Parece que nunca, em palcos de
entremez, se representou coisa de tanto agrado para a massa dos espectadores.
(in Mensagem de 15 de março de
1958)
António Augusto de Miranda
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