Recordando, dezembro de 1956


A leitura do último número de “Mensagem” recorda o 12.º aniversário do falecimento de uma das figuras que mais direitos conquistou à gratidão do povo desta freguesia — o major Joaquim da Silva Geraldo.
Poucos homens tenho conhecido, na minha já longa vida, que, como o major Geraldo, tanto tenham dispersado a sua existência a favor do seu semelhante.
Dotado de um arcabouço atlético que parecia desafiar a longevidade, a final sucumbiu suavemente a um ataque insidioso de uma angina pectoris, mal que costuma instalar-se, subrepticiamente, no interior dos organismos os mais robustos, pelo menos aparentemente. Fechou suavemente os olhos, como uma criança quando adormece, aqueles olhos grandes, cheios de vida, como dois holofotes esparzindo luz a jorros, deixando este mundo numa idade em que o seu espírito cintilante e a sua vontade enérgica prometiam largas realizações.
Não sendo desta terra, a ela se ligou pelo casamento, mas com laços de tal solidez, que todo se entregou a esta freguesia, pela qual trabalhou incansavelmente até ao momento imprevisto em que a morte cortou, de um golpe, o fio daquela existência preciosa.
Conheci-o, primeiramente, pelas referências que da sua personalidade me chegaram. O major Geraldo não era só um grande militar e um respeitável cidadão: era também um grande educador, um excepcional chefe de família. Era um verdadeiro modelador de almas, que amoldava ao seu carácter como o oleiro faz ao barro. Comecei por conhecê-lo pelo meu casamento com a senhora que, de pequena, lhe fora entregue e cuja existência ele acompanhou até à puberdade. Por ela eu soube os primores que continha aquela alma diamantina, que Agostinho de Campos, se o tivesse conhecido, teria colocado, mentalmente, a chefiar a sua excelente “CASA DE PAIS, ESCOLA DE FILHOS”.
Verdadeiro pedagogo e sem curso diplomado, ele fazia corresponder ao que, pelo exemplo e pela palavra, ensinava em casa, a sua conduta na rua, no quartel e na repartição.
Não era oficial combatente. Pertencia à Administração Militar. Se fosse oficial combatente, teria exposto a sua vida aos estragos das balas e das intempéries com a galantaria de um cavaleiro andante. Mas nas funções burocratas que lhe estavam confiadas, ele expôs ao máximo as suas qualidades de pundonor, honra e honestidade. Em qualquer posto um homem pode servir com o máximo de utilidade que as suas funções comportam. E no exercício das suas funções de Chefe de Departamento que, se a memória me não atraiçoa, se chamava “Depósito Central de Fardamentos”, o major Joaquim da Silva Geraldo revelou a profundidade do filão diamantífero que era a sua alma.
Não merece a pena relatar misérias. Foi em tempo de guerra, que a época daninha das grandes negociatas com prerrogativas de impunidade. Foi numa época dessas que o major Geraldo travou, nos bastidores da sua repartição, uma das maiores batalhas da sua época. Dessa batalha saiu ele triunfante; e se, ao abandonar o quartel, não ostentou as medalhas que costumam esmaltar o peito dos heróis, mostrava o rosto radiante de felicidade e trazia a consciência leve como a neblina a esvoaçar ao sol da manhã.
Veio depois fixar residência em Alquerubim. Não sendo agricultor, as suas lições eram de um sábio que houvesse cursado com o maior proveito a melhor escola agrária. Não sendo um jurista, as suas decisões, como presidente da Junta de Freguesia, eram dignas do mais abalizado administrativista; e, não sendo capitalista, as suas liberalidades muitas vezes supriam a deficiência orçamental, em detrimento da sua bolsa.
O major Joaquim da Silva Geraldo era o que os ingleses chamam the right man in the right place, o homem competente no seu devido lugar.
Muito lhe ficou a dever esta freguesia, quer em favores particulares, quer em benefícios públicos. De mais larga projecção, atestam-no a Casa do Povo e o edifício dos Correios.
Nada lhe faltou para merecer a consideração da posteridade. Até a ingratidão dos homens.
(in Mensagem de 15 de dezembro de 1959)

António Augusto de Miranda

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