Recordando, dezembro de 1957


De tudo o que estudei em rapaz, o que mais me agradava era a música; e, ao passo que as matérias da escola me eram impostas pela obrigação (e era talvez por isto que eu as detestava, sendo, por isso, um mau estudante), a música, que, por um mero acidente na vida, entrou no activo das minhas ocupações, não precisou do imperativo da disciplina escolar e doméstica para que eu a cultivasse como o mais agradável dos meus passatempos. Tinha eu cerca de 15 anos, um percalço num pé impedia-me de me calçar e caminhar, determinando a perda de um ano, porque tive de ficar em casa durante alguns meses.
Paroquiava a freguesia de Alquerubim o Padre Narciso da Silva Nunes, que tinha uma bela voz de tenor e sabia música. Notou ele em mim gosto pela música e vontade de a aprender, e ofereceu-se para me ensinar. E, assim, ia eu todos os dias, à Residência, sobraçando o livro de solfejo e claudicando da minha perna doente. O estudo era pela forma que melhor quadrava a quem, como eu, não possuía um instrumento e que ainda não pensava em que instrumento havia um dia de aplicar os meus conhecimentos musicais: era vocalmente as notas entoadas em dueto, o professor cantando a segunda voz, acompanhando a primeira, que eu, na minha fraca sonoridade, lá conseguia entoar.
Isto me valeu de muito, mais tarde, no estudo do violino, quando me decidi por este instrumento.
Em boa hora aceitei a oferta do Padre Narciso, que me iniciou na cultura da música; e em boa hora me dediquei ao violino, que mais tarde se me havia de tornar companheiro indispensável na conquista do pão durante a minha formatura em direito.
Foi o caso que, regressando eu, em outubro seguinte, a Aveiro, já restabelecido do achaque que me retivera durante meses em Alquerubim, o padre, em casa de quem eu estava hospedado, era o regente de uma orquestra de igreja; e o violino era o instrumento que ele cultivava e que ainda conservava. Notou ele, um dia, que eu afinava as quatro cordas do violino com certa perfeição e quis saber até onde chegavam os meus conhecimentos de música, fazendo-me um ligeiro exame. O resultado foi mandar-me para o côro, enquadrado nos músicos cantores da sua orquestra.
Mas a vontade de estudar violino avassalou-me o espírito e, certo dia, o padre Jorge (assim se chamava o bondoso padre, de quem sempre me lembro com ternura e saudade), ficou surpreendido ao ouvir-me e ver-me a executar uma valsa de Waldeteuffel.
Mandou-me então para o côro, mas para o meio dos violinos, onde me pôs ao lado do músico que tocava a parte de 3.º violino e que tinha a alcunha de “Já disse”.
Isto de tocar em casa é uma coisa; e tocar fora de casa, em conjunto que nos obriga à disciplina do ritmo e do compasso, é outra e bem diversa. E assim foi que, no primeiro ensaio que assisti, andei sempre perdido no meio da floresta densa das notas. De vez em quando parava, à procura do fio de Ariadne.
O “Já disse” ria-se e eu desesperava-me.
— Isso sucede a todos, disse-me ele, para me consolar. Queres saber porque me chamam o “Já disse”?
— Diga lá…
— «Foi porque,  da primeira vez que me puseram o papel de uma sinfonia em frente de mim, eu fiquei de tal maneira atrapalhado, que não pensei noutra coisa senão em chegar depressa ao fim: e tão depressa toquei o que estava no papel, que a certa altura parei, por não ter mais que tocar, e admirei-me muito de ver os outros ainda agarrados à solfa. Então senti a batuta do padre Jorge tocar-me na cabeça e ouvi-lhe perguntar-me:
— Então tu não tocas?
Eu respondi muito concho do meu papel:
— Eu já disse…
E daqui me veio a alcunha».
Fiquei com um receio pavoroso de que me sucedesse o mesmo e tratei de o evitar. Por que forma — adiante o direi.

(in Mensagem de 15 de dezembro de 1957)
António Augusto de Miranda

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