De tudo o que estudei em rapaz, o
que mais me agradava era a música; e, ao passo que as matérias da escola me
eram impostas pela obrigação (e era talvez por isto que eu as detestava, sendo,
por isso, um mau estudante), a música, que, por um mero acidente na vida,
entrou no activo das minhas ocupações, não precisou do imperativo da disciplina
escolar e doméstica para que eu a cultivasse como o mais agradável dos meus
passatempos. Tinha eu cerca de 15 anos, um percalço num pé impedia-me de me
calçar e caminhar, determinando a perda de um ano, porque tive de ficar em casa
durante alguns meses.
Paroquiava a freguesia de
Alquerubim o Padre Narciso da Silva Nunes, que tinha uma bela voz de tenor e
sabia música. Notou ele em mim gosto pela música e vontade de a aprender, e
ofereceu-se para me ensinar. E, assim, ia eu todos os dias, à Residência,
sobraçando o livro de solfejo e claudicando da minha perna doente. O estudo era
pela forma que melhor quadrava a quem, como eu, não possuía um instrumento e
que ainda não pensava em que instrumento havia um dia de aplicar os meus
conhecimentos musicais: era vocalmente as notas entoadas em dueto, o professor
cantando a segunda voz, acompanhando a primeira, que eu, na minha fraca
sonoridade, lá conseguia entoar.
Isto me valeu de muito, mais
tarde, no estudo do violino, quando me decidi por este instrumento.
Em boa hora aceitei a oferta do
Padre Narciso, que me iniciou na cultura da música; e em boa hora me dediquei
ao violino, que mais tarde se me havia de tornar companheiro indispensável na
conquista do pão durante a minha formatura em direito.
Foi o caso que, regressando eu,
em outubro seguinte, a Aveiro, já restabelecido do achaque que me retivera
durante meses em Alquerubim, o padre, em casa de quem eu estava hospedado, era
o regente de uma orquestra de igreja; e o violino era o instrumento que ele
cultivava e que ainda conservava. Notou ele, um dia, que eu afinava as quatro
cordas do violino com certa perfeição e quis saber até onde chegavam os meus
conhecimentos de música, fazendo-me um ligeiro exame. O resultado foi mandar-me
para o côro, enquadrado nos músicos cantores da sua orquestra.
Mas a vontade de estudar violino
avassalou-me o espírito e, certo dia, o padre Jorge (assim se chamava o bondoso
padre, de quem sempre me lembro com ternura e saudade), ficou surpreendido ao
ouvir-me e ver-me a executar uma valsa de Waldeteuffel.
Mandou-me então para o côro, mas
para o meio dos violinos, onde me pôs ao lado do músico que tocava a parte de
3.º violino e que tinha a alcunha de “Já disse”.
Isto de tocar em casa é uma
coisa; e tocar fora de casa, em conjunto que nos obriga à disciplina do ritmo e
do compasso, é outra e bem diversa. E assim foi que, no primeiro ensaio que
assisti, andei sempre perdido no meio da floresta densa das notas. De vez em
quando parava, à procura do fio de Ariadne.
O “Já disse” ria-se e eu
desesperava-me.
— Isso sucede a todos, disse-me
ele, para me consolar. Queres saber porque me chamam o “Já disse”?
— Diga lá…
— «Foi porque, da primeira vez que me puseram o papel de uma
sinfonia em frente de mim, eu fiquei de tal maneira atrapalhado, que não pensei
noutra coisa senão em chegar depressa ao fim: e tão depressa toquei o que
estava no papel, que a certa altura parei, por não ter mais que tocar, e
admirei-me muito de ver os outros ainda agarrados à solfa. Então senti a batuta
do padre Jorge tocar-me na cabeça e ouvi-lhe perguntar-me:
— Então tu não tocas?
Eu respondi muito concho do meu
papel:
— Eu já disse…
E daqui me veio a alcunha».
Fiquei com um receio pavoroso de
que me sucedesse o mesmo e tratei de o evitar. Por que forma — adiante o direi.
(in Mensagem de 15 de dezembro de
1957)
António Augusto de Miranda
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