Este RECORDANDO tem de ser um
epitáfio, uma vez que me falta aquela disposição para o manter fiel ao carácter
alegre, embora por vezes repassado de certa melancolia, que a recordação das
pessoas e das coisas de outra época precisa de imprimir ao que se diz, falando
ou escrevendo.
Também não é um fio caudaloso de
lágrimas soltas, que a dor humana que não se manifesta por lágrimas e é
recalcada no coração é a que mais se sente. Não chega, por isso, a ser aquele
«delgado soro do estanques lágrimas» como Garrett definiu a Saudade, para
amenizar a saudade que sinto pelo querido morto que aqui vou recordar.
Basta que seja uma simples
lágrima, não de orvalho, como a que Junqueiro fez cair, silenciosa, sobre a
corola do triste cardo da encosta escalvada, mas uma lágrima verdadeira, mais
forte que a minha vontade de a esmagar sob os cílios aonde aflorou.
Alquerubim perdeu há pouco tempo
um dos seus filhos que mais ilustraram a sua terra. Formado em Medicina, dotado
de uma inteligência brilhante, podendo ter feito carreira onde tantos, sem as
suas qualidades, têm triunfado, preferiu sacrificar a sua mocidade, a vida
inteira, indo trabalhar onde a luta pela vida é esgotante e sem compensações
que o esforço que despendeu merecia.
Ao comodismo de uma clínica a
horas certas e debaixo de tecto acolhedor, preferiu a vida mortificante de
médico sertanejo no Ultramar, numa luta permanente com as febres e os elementos
meteorológicos, e ali gastou o melhor da sua existência, aplicando o seu saber,
a sua energia, nesta luta da qual não saiu rico de bens materiais, mas
engrandecido pela aplicação da sua vida de trabalho no fortalecimento do
prestígio da nossa presença nas terras ultramarinas e pela construção de
existência modelar, que culminou na constituição de uma família exemplar,
criada no mais suave ambiente de ternura que foi timbre da sua vida, e que foi,
decerto, a melhor compensação que encontrou para todo o esforço despendido. Ali
gastou as suas energias num missionarismo só compreendido em toda a sua
extensão por quem algum dia o praticou ou esteve em condições de admirá-lo, e
longe das multidões aduladoras ou compreensivas, sem outro estímulo que o do
trabalho licitamente remunerado, que o não deixou rico, e o ardente desejo de
bem cumprir, não olhando a sacrifícios e canseiras arrasadoras da saúde.
Tenho uma admiração sem limites
por pessoas que se entregam de corpo e alma, cègamente, ao cumprimento do seu
dever no desempenho da missão que voluntária e espontâneamente cada um abraçou.
O nosso império ultramarino tem sido alfobre de heróis da guerra e da paz, e
são estes os que eu admiro mais, por serem eles os verdadeiros construtores de
impérios. O médico que se embrenha no mato, debaixo das intempéries
depauperantes dos trópicos, num esforço constante, esquecido da própria doença
para cuidar da saúde dos que lhe são confiados, e isto não uma vez, mas sempre,
sem descanso, durante a vida inteira enquanto as forças o permitem, é um herói,
seja médico do Estado, esteja êle ao serviço de um roceiro. E foi no desempenho
desta missão que o Dr. Arnaldo Nogueira de Lemos gastou a sua vida, primeiro no
clima depauperador da Catumbela, depois, e durante muitos anos, enquanto pôde,
através, e em todos os sentido, das florestas doentias e inóspitas da ilha de
S. Tomé.
A sua vida foi um raro exemplo de
trabalho honesto e construtivo; e quando regressou à sua terra natal para
descansar, a doença prostrou-o para nunca mais se poder levantar.
Fui acompanhá-lo há dias, a essa
sombra de rapaz que na mocidade deslumbrou pela sua formosura, pela sua
simpatia, pela sua esbelteza, e, principalmente, pela sua bondade.
Lá ficou, na aridez da sua tumba,
uma lágrima derramada por olhos que já não sabem chorar, depois de tantos
abalos sofridos através de uma vida já bem longa, entremeada de muitos soluços,
que êle na mocidade ajudou a confortar.
(in Mensagem de 15 de dezembro de
1958)
António Augusto de Miranda
Sem comentários:
Enviar um comentário