Recordando, dezembro de 1959


Estamos em 1920.
A Beira, naquele tempo, vista de bordo, parecia uma feira, por causa dos edifícios cobertos a zinco e a profusão de paus de bandeiras que se erguiam no ar. Sem cais acostável, os navios fundeavam na baía e era necessário escaler ou gazolina para ir a terra. Com dificuldade ou sem ela, os passageiros lá conseguiam pôr os pés em terra firme, depois de uma travessia que, em maré de calma, nos punha da cor da cidra.
Casas de alvenaria, apenas me lembram as da sede da Companhia de Moçambique, a do Tribunal, a do Banco Nacional Ultramarino e, a melhor coisa que, em matéria de edifícios, existia na Beira: a Igreja e a Escola de Artes e Ofícios, anexa ao Templo, de que foi fundador o Padre Rafael da Assunção, o qual, passados 11 anos, fui encontrar em Lourenço Marques, na sua qualidade de Bispo de Augusta e Prelado de Moçambique. Este prelado, que foi uma destacada figura do corpo missionário do Ultramar Português, faleceu há poucos dias em Lisboa, Bispo resignatário de Cabo Verde.
A Beira limitava-se ao conjunto de habitações que se aglomeravam junto do porto, e pouco mais, a praia de banhos, era situada a algumas a uma distância de algumas centenas de metros, num sítio chamado «Ponta Geia» (salvo êrro de memória), tendo de se atravessar, para lá chegar, uma zona palustre povoada por núvens de mosquitos. Tudo isso desapareceu, e a Beira é hoje uma cidade moderna, mas sofrendo ainda das consequências de uma vida perdulária por causa dos vencimentos e ordenados pagos em ouro, que faziam da Beira, ainda há pouco tempo, a terra de vida mais cara da Província de Moçambique. Ainda há poucos anos os funcionários do Estado recebiam um suplemento de vencimento numa percentagem de uns 20 a 25%, salvo êrro. Não sei se este regime ainda vigora.
Naquele tempo, um funcionário de média categoria não recebia menos de 100 libras por mês! Com a propensão para o delírio das grandezas, que é uma doença tropical que ataca muitas pessoas da Europa, sobretudo as que aqui nunca sentiram tal fartura, calcule quem me lêr o que não seria a vida na sociedade da beira, naquele tempo.
Houve senhoras, de elevada categoria, que nas suas recepções ofereciam chás a cor — isto é, em certo dia, era chá verde (as senhoras iam vestidas de verde); noutro dia era chá azul: os trajos das senhoras eram de cor azul. E assim por diante, nesta loucura.
Passados 3 dias no Queen’s Hotel, — (um hotel funcionando em edifício de madeira) a Companhia Nacional de Navegação meteu os poucos passageiros que se destinavam a Tete ao ao Chinde, num rebocador de alto mar. ainda me lembro do seu nome, tal a desagradável impressão que me deixou, a qual ainda se não desvaneceu, apesar de passados 39 anos: chamava-se Incomati, que é o nome de um pequeno rio do Sul da Província, povoado de jacarés.
É claro que um rebocador só tem alojamentos para os seus tripulantes, não se destinando a passageiros, não é provido de camarotes e beliches.
Sendo assim, como se compreende que a Companhia mandasse embarcar num rebocador de alto mar — (e que mar!) passageiros a êsmo, sem a mais leve consideração pelo sexo, pela idade, pela saúde, pela categoria social? Não se tratava de transportar pessoas em uma travessia semelhante à de Lisboa para Cacilhas, mas de um porto de mar para outro, viagem que normalmente levava 18 horas a fazer, quando não levava dois a três dias, sob o império de uma inesperada corrente marítima ou de um furacão como os que algumas vezes surgem de surpreza no Canal de Moçambique.
Conhecedor disto, o engenheiro-maquinista do navio em que tínhamos viajado de Lisboa até à Beira, recomendou-nos ao maquinista do rebocador, que (gentileza, que nunca esquecerei) pôs à nossa disposição o seu camarote, onde nos alojámos durante a noite da travessia.
E que noite! É o que vos contarei no próximo número.
 (in Mensagem de 15 de dezembro de 1959)
António Augusto de Miranda

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