CARTA a um amigo
Meu caro prior;
Venho depositar nas suas mãos o
compromisso que tomei das mãos do bom Padre Miguel, quando este me expôs a
ideia de fundar este jornalzinho — qual foi o de colaborar assiduamente em
todos os números. Isto já foi há alguns anos, meu bom amigo, e nesse tempo eu
ainda me sentia com disposição para alinhavar uma croniqueta por mês, coisa
que, na verdade, eu com relativa facilidade conseguia fazer. Mas isto de
escrever, ou, melhor dizendo, ordenar material com que se possam encher duas
colunas, embora se trate de um jornal de pequeno formato, não é tarefa tão
fácil como a muitos parecerá. Quando se trata, como no caso presente, de
respigar o assunto na forragem da memória, e esta é alimentada pelo fogo, cada
vez menos crepitante, de uma fornalha já cansada pela sucessão de muitos
janeiros, o caso é apavorante ao ver aproximar-se o dia — o último dia — do
prazo em que se há-de entregar o original ao redactor. Em vez de se aguçar com
a aproximação desse dia, a memória fica mais romba, mais estúpida, mais estéril
que uma seara depois do roçar da foice.
Isto é como uma lâmpada — mas não
uma lâmpada eléctrica, que pode ser alimentada indefinidamente — mas sim uma
lâmpada de óleo que só pode funcionar com uma certa quantidade de combustível
que lhe é destinada quando é acesa para se apagar só quando o óleo acabar.
Vê o meu amigo a pobreza da
comparação? Quer prova mais concludente da decadência da minha memória e da
minha invenção, do que o recurso, de que lancei mão, de o comparar a uma
lâmpada de azeite, quando nós todos assistimos à permanência e continuidade da
luz que alumia um altar mór?
Ora deixemos estas coisas de
significado transcendente, senão meto os pés pelas mãos; e assentemos nisto:
sinto-me cansado e sem disposição para escrever. Esta é a verdade nua e crua,
como sói dizer-se, e não tenho forças nem coragem para manter o compromisso —
pelo menos com a assiduidade costumada e que eu muito desejaria continuar a
manter.
Não digo que seixo o jornalzinho
para sempre. Quando me encontrar com disposição necessária para encher três ou
quatro quartos de papel, cá me tem. Deus permita que isso possa suceder muitas
vezes. É bom sinal.
O que apavora é esta obrigação,
que tem de ser cumprida em data ou prazo certo. Ficando liberto desta
preocupação, com a vontade livre para escrever quando me aprouver, pode muito
bem suceder eu não ter dificuldade em, de vez em quando, lhe mandar alguma
coisa para encher a folha, que eu estimo como coisa minha, porque nela colaboro
desde a sua fundação e em todos os números desde o 2.º.
Por isso não é sem saudades que
me despeço da sua convivência permanente, e procurarei, na medida do possível,
não me despedir das suas colunas, enquanto tiver forças para isso.
Cumprimentos afectuosos do Amigo
muito dedicado,
António Augusto de Miranda
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