Recordando, dezembro de 1961


CARTA a um amigo
Meu caro prior;
Venho depositar nas suas mãos o compromisso que tomei das mãos do bom Padre Miguel, quando este me expôs a ideia de fundar este jornalzinho — qual foi o de colaborar assiduamente em todos os números. Isto já foi há alguns anos, meu bom amigo, e nesse tempo eu ainda me sentia com disposição para alinhavar uma croniqueta por mês, coisa que, na verdade, eu com relativa facilidade conseguia fazer. Mas isto de escrever, ou, melhor dizendo, ordenar material com que se possam encher duas colunas, embora se trate de um jornal de pequeno formato, não é tarefa tão fácil como a muitos parecerá. Quando se trata, como no caso presente, de respigar o assunto na forragem da memória, e esta é alimentada pelo fogo, cada vez menos crepitante, de uma fornalha já cansada pela sucessão de muitos janeiros, o caso é apavorante ao ver aproximar-se o dia — o último dia — do prazo em que se há-de entregar o original ao redactor. Em vez de se aguçar com a aproximação desse dia, a memória fica mais romba, mais estúpida, mais estéril que uma seara depois do roçar da foice.
Isto é como uma lâmpada — mas não uma lâmpada eléctrica, que pode ser alimentada indefinidamente — mas sim uma lâmpada de óleo que só pode funcionar com uma certa quantidade de combustível que lhe é destinada quando é acesa para se apagar só quando o óleo acabar.
Vê o meu amigo a pobreza da comparação? Quer prova mais concludente da decadência da minha memória e da minha invenção, do que o recurso, de que lancei mão, de o comparar a uma lâmpada de azeite, quando nós todos assistimos à permanência e continuidade da luz que alumia um altar mór?
Ora deixemos estas coisas de significado transcendente, senão meto os pés pelas mãos; e assentemos nisto: sinto-me cansado e sem disposição para escrever. Esta é a verdade nua e crua, como sói dizer-se, e não tenho forças nem coragem para manter o compromisso — pelo menos com a assiduidade costumada e que eu muito desejaria continuar a manter.
Não digo que seixo o jornalzinho para sempre. Quando me encontrar com disposição necessária para encher três ou quatro quartos de papel, cá me tem. Deus permita que isso possa suceder muitas vezes. É bom sinal.
O que apavora é esta obrigação, que tem de ser cumprida em data ou prazo certo. Ficando liberto desta preocupação, com a vontade livre para escrever quando me aprouver, pode muito bem suceder eu não ter dificuldade em, de vez em quando, lhe mandar alguma coisa para encher a folha, que eu estimo como coisa minha, porque nela colaboro desde a sua fundação e em todos os números desde o 2.º.
Por isso não é sem saudades que me despeço da sua convivência permanente, e procurarei, na medida do possível, não me despedir das suas colunas, enquanto tiver forças para isso.
Cumprimentos afectuosos do Amigo muito dedicado,
António Augusto de Miranda

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