Se é certo que as palavras são
como as cerejas, que, puxando-se por uma, vêm uma molhada delas ligadas, não é
menos certo que as recordações são como as ginjas, que, vindo também às
molhadas, como as cerejas, diferem destas pelo seu gosto amargo aquele “gosto
amargo de acervo espinho”, de que fala Garrett.
Mas… recordar é viver, lá disse
outro poeta. Sim: recordar é viver uma vida ilusória. E que é afinal a vida,
naquilo que ela tem de mais agradável, senão uma série de ilusões?
Por falar no Cabeço de Santo
Estevão, no último número de “ Mensagem”, vieram-me à memória as doces tardes
dos domingos que eu ia, de vez em quando, passar ao Corgo, que é, digamos, um
sub-lugar de Calvães, onde se ergue o Cabeço.
Morava ali, mesmo na base do
Cabeço, uma família, apenas constituída por pai e filha. Já não me recordo do
nome dele, mas parece-me que era José. Ela chamava-se Diolinda, era muito amiga
de minha mãe, que lhe pagava na mesma moeda. A Diolinda tinha por minha mãe uma
devoção rara. Sua antiga aluna na costura, sempre a tratou por senhora mestra. Alma sã, esta Diolinda,
e o pai, já bastante entrado na idade, tinham por mim carinhos que só se
costumam dedicar aos filhos dos fidalgos,
como na aldeia se designavam, naqueles tempos, os filhos das pessoas mais
gradas da terra.
Minha mãe ia muitas vezes, aos
domingos, visitar a sua querida amiga, e eu ia com ela. Ia num sino, como soi
dizer-se, ao lado de minha mãe, a caminho daquela casa hospitaleira. Ali não
havia crianças com quem eu pudesse brincar. No entanto, eu passava lá o tempo
satisfeito. Uma criança sente-se feliz quando se vê rodeada de carinhos e
atenções.
Esta grande amiga da minha mãe
veio mais tarde a casar-se com João Bolais Mónica, da família dos Mónicas,
creio que originários de Verdemilho, e que estão espalhados por Travassô,
Gafanha, etc. É uma família de artistas. O que casou no Corgo não ficava a
dever nada aos demais parentes. Exímio na construção de motores aéreos, foi ele
o construtor daquele que, há mais de 50 anos, se mostra, na sua elegância de
linha, no quintal que pertenceu a minha sogra, D. Ermelinda de Almeida, no
lugar de Fontes, o qual, neste período de tempo, tem aguentado as mais furiosas
tempestades, sempre impávido e destemido.
Ainda hoje, passados muitos anos,
tenho remorsos do desgosto que dei a João Mónica, com uma tirada do meu
primeiro discurso pronunciado na minha estreia como advogado no tribunal de
Albergaria-a-Velha. Como efeito de oratória, eu tentei elevar o nível moral do
meu constituinte, o réu, e de deprimir, se não o moral, porque João Mónica era
são como um pero, pelo menos a sua figura física. Homem forte, atarracado, um
arcaboiço abrutalhado envolvendo uma alma sadia, activo como um pé de vento, eu
a uma palheira revoluteando num pé de vento o comparei, arribado a Alquerubim
numa manhã de tempestade, e pousando no Corgo, como a nau batida pelo mar
ancorando em porto seguro.
O que eu fui dizer!
João Mónica, que tinha em casa
uma fotografia minha, de quando eu era pequenino, dos tempos em que eu ia
passar tardes de domingos em casa do sogro, ao chegar a casa (pois tinha
assistido à audiência na sua qualidade de queixoso) pega na fotografia e,
contemplando-a muito enternecido e desgostoso, exclama, dirigindo-se à esposa:
— Quem havia de dizer, Diolinda!
O que este menino me disse , ali, no tribunal, diante de tanta gente! Que eu
vim p´ràqui trazido num pé de vento! Quem havia de dizer, que este menino, que
tu viste crescer, me havia de dar este desgosto!
E chorava, o bom do Mónica,
porque, sendo um grande artista nas mecânicas, era insensível aos efeitos
retóricos e chicaneiros da oratória forense.
Que remorsos isso me deixou! Foi
por essa e por outras que eu abandonei a advocacia.
Por essa e por outras…
Ainda há pouco tempo, apareceu-me
ao portão um homem a pedir.
— O Sr. Doutor já almoçou na
minha casa…
E relatou a sua vida e a razão da
sua queda.
Lembrei-me então, de certo
domingo em que ele, então vivendo desafogado, me convidou para ir a sua casa,
onde me esperavam as testemunhas, que haviam de ser ouvidas na acção, as quais
ele convocara para o ensaio…
Foi por essa e por outras… que tu
caíste e eu me elevei, Martins!
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