Recordando, fevereiro de 1957


Se é certo que as palavras são como as cerejas, que, puxando-se por uma, vêm uma molhada delas ligadas, não é menos certo que as recordações são como as ginjas, que, vindo também às molhadas, como as cerejas, diferem destas pelo seu gosto amargo aquele “gosto amargo de acervo espinho”, de que fala Garrett.
Mas… recordar é viver, lá disse outro poeta. Sim: recordar é viver uma vida ilusória. E que é afinal a vida, naquilo que ela tem de mais agradável, senão uma série de ilusões?
Por falar no Cabeço de Santo Estevão, no último número de “ Mensagem”, vieram-me à memória as doces tardes dos domingos que eu ia, de vez em quando, passar ao Corgo, que é, digamos, um sub-lugar de Calvães, onde se ergue o Cabeço.
Morava ali, mesmo na base do Cabeço, uma família, apenas constituída por pai e filha. Já não me recordo do nome dele, mas parece-me que era José. Ela chamava-se Diolinda, era muito amiga de minha mãe, que lhe pagava na mesma moeda. A Diolinda tinha por minha mãe uma devoção rara. Sua antiga aluna na costura, sempre a tratou por senhora mestra. Alma sã, esta Diolinda, e o pai, já bastante entrado na idade, tinham por mim carinhos que só se costumam dedicar aos filhos dos fidalgos, como na aldeia se designavam, naqueles tempos, os filhos das pessoas mais gradas da terra.
Minha mãe ia muitas vezes, aos domingos, visitar a sua querida amiga, e eu ia com ela. Ia num sino, como soi dizer-se, ao lado de minha mãe, a caminho daquela casa hospitaleira. Ali não havia crianças com quem eu pudesse brincar. No entanto, eu passava lá o tempo satisfeito. Uma criança sente-se feliz quando se vê rodeada de carinhos e atenções.
Esta grande amiga da minha mãe veio mais tarde a casar-se com João Bolais Mónica, da família dos Mónicas, creio que originários de Verdemilho, e que estão espalhados por Travassô, Gafanha, etc. É uma família de artistas. O que casou no Corgo não ficava a dever nada aos demais parentes. Exímio na construção de motores aéreos, foi ele o construtor daquele que, há mais de 50 anos, se mostra, na sua elegância de linha, no quintal que pertenceu a minha sogra, D. Ermelinda de Almeida, no lugar de Fontes, o qual, neste período de tempo, tem aguentado as mais furiosas tempestades, sempre impávido e destemido.
Ainda hoje, passados muitos anos, tenho remorsos do desgosto que dei a João Mónica, com uma tirada do meu primeiro discurso pronunciado na minha estreia como advogado no tribunal de Albergaria-a-Velha. Como efeito de oratória, eu tentei elevar o nível moral do meu constituinte, o réu, e de deprimir, se não o moral, porque João Mónica era são como um pero, pelo menos a sua figura física. Homem forte, atarracado, um arcaboiço abrutalhado envolvendo uma alma sadia, activo como um pé de vento, eu a uma palheira revoluteando num pé de vento o comparei, arribado a Alquerubim numa manhã de tempestade, e pousando no Corgo, como a nau batida pelo mar ancorando em porto seguro.
O que eu fui dizer!
João Mónica, que tinha em casa uma fotografia minha, de quando eu era pequenino, dos tempos em que eu ia passar tardes de domingos em casa do sogro, ao chegar a casa (pois tinha assistido à audiência na sua qualidade de queixoso) pega na fotografia e, contemplando-a muito enternecido e desgostoso, exclama, dirigindo-se à esposa:
— Quem havia de dizer, Diolinda! O que este menino me disse , ali, no tribunal, diante de tanta gente! Que eu vim p´ràqui trazido num pé de vento! Quem havia de dizer, que este menino, que tu viste crescer, me havia de dar este desgosto!
E chorava, o bom do Mónica, porque, sendo um grande artista nas mecânicas, era insensível aos efeitos retóricos e chicaneiros da oratória forense.
Que remorsos isso me deixou! Foi por essa e por outras que eu abandonei a advocacia.
Por essa e por outras
Ainda há pouco tempo, apareceu-me ao portão um homem a pedir.
— O Sr. Doutor já almoçou na minha casa…
E relatou a sua vida e a razão da sua queda.
Lembrei-me então, de certo domingo em que ele, então vivendo desafogado, me convidou para ir a sua casa, onde me esperavam as testemunhas, que haviam de ser ouvidas na acção, as quais ele convocara para o ensaio
Foi por essa e por outras… que tu caíste e eu me elevei, Martins!
 (in Mensagem de 15 de fevereiro de 1957)
 António Augusto de Miranda

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