Quando se chega à minha idade, o
corpo pede descanso. É verdade que eu tenho conhecido muitos novos que também o
gozam, e na medida larga. Mas esses é por preguiça, que é pecado que nunca
tive, graças a Deus (perdoem-me a confissão, que não é vaidade). Nunca gostei
nem soube estar quedo. Em pequeno, eu era um brincalhão dos quatro costados. O
brincar também é uma forma de actividade. Cada um na sua idade. Já depois,
quando me mandaram para Aveiro, a fim de preparar as asas para voos mais altos,
lá aos estudos não ligava. Os primeiros anos ocupei-os em adquirir
conhecimentos de utilidade prática. O
bom do Padre Jorge, a quem já aqui fiz referência, dava-me toda a liberdade. Vivendo
em contacto com a ria e a gente da Beira-Mar, foi assim que aprendi a nadar; a
guiar uma bateira à vara, a remo e à vela; a deitar foguetes… O leitor ri-se?
Pois olhe que isto de saber deitar foguetes é uma prenda que de um momento para
o outro nos pode fazer um jeitão. Que o diga o Sr. Professor David Lemos, que
ainda é vivo (e que seja por muitos anos e bons e que eu lhos conte): se
soubesse deitar foguetes comme il faut,
como dizem os franceses, não teria a falta de dois dedos (dois ou três? — não
me lembro bem) em uma das mãos, dedos que nuca mais lhe nasceram. Antes quebrar
os dentes da primeira dentição, porque esses são sabiamente e gratuitamente
substituídos por outros, e melhores.
Ora pois. Mas, além do nadar, de
guiar barcos, de deitar foguetes, eu aprendi outras prendas, como tocar o sino
às Avé-Marias (porque dobrar os sinos, não éra comigo ainda: eles eram pesados
de mais para as minhas forças). E acima de todas as prendas que adquiri, eu
aprendi música e, concomitantemente, a tocar violino, prenda de que tirei, mais
tarde, utilíssimo resultado.
Ora aí está como um rapazinho que
era cábula emérito, soube encher-se de prendas por uma autodidaxia que, se
fosse hoje, teria sido galardoada. A minha família é que não ligou grande
importância a essas prendas e tratou de me galardoar com o prémio que entendeu
ser mais digno de mim: internou-me num seminário. Ali, desabituado, como ia, do
contacto com os livros, lá fui satisfazendo, conforme pude, as exigências dos
professores, e chegaria ao fim, se, com a idade, não surgisse problema capital:
reconheci que não tinha vocação para a vida eclesiástica. Creio que foi a
melhor decisão da minha vida, o abandono da carreira, por reconhecer falta de
aptidão para ela, que considero a mais melindrosa de todas as carreiras que a
um homem é dado abraçar. A mais melindrosa e por isso a mais difícil de
desempenhar, por causa dos espinhos de que o seu caminho está semeado
abundantemente. Nunca tomai encargo de ocupação quando não sentia forças para a
cumprir. Por isso abandonei o Seminário.
Mas adquiri ali hábitos, afinei
qualidades, que me foram de grande valia pela vida fora. O método no trabalho e
a ciência da economia do tempo, ali aprendidos, sabendo distribui-los entre os
deveres e o descanso, deram em resultado nunca me ter faltado o tempo para
cumprir as minhas obrigações, sem excessos de esforço que prejudicam a saúde.
Até que, atingi um período da vida em que o corpo pede descanso — não aquele
descanso de que se precisa depois de muitas horas de trabalho e após o qual nos
sentimos dispostos a recomeçar a nossa actividade — mas este descanso que o
Estado concede aos seus servidores depois de muitos anos de esforço despendido
ao seu serviço e que ele, bem ou mal, nos retribui com a aposentação.
A verdade é que eu já não tenho
aquela facilidade de outro tempo em alinhavar duas regras, e vejo-me por vezes
às aranhas para encontrar assunto com que encha as poucas linhas de que este
jornalzinho dispõe para o meu «RECORDANDO».
Evidentemente que, se eu me puser
a andar, com a imaginação, por terra e por mar, durante os muitos anos que
servi o Estado, não me falta material para encher o papel. Mas isso
interessaria a um ou outro leitor. A generalidade deles o que pretende é que eu
não saia das vielas, dos caminhos, das estradas, dos tugúrios e das florestas
da nossa abençoada terra, e que reproduza conversas que surpreendi ou as que
entabulei, com os aldeões que a povoam, os quais já não são, na sua décima
parte, aqueles que eu deixei quando daqui saí ou quando saíram de cá muitos dos
conterrâneos ausentes em terras distantes.
Pareceu-me que satisfaria aos
dois paladares, ir tocando alternadamente os assuntos do Ultramar e os de cá.
Os de cá são tão poucos e a memória está já tão enfraquecida, que eu por vezes
vejo-me e desejo-me para arranjar assunto para uma palestra.
… E agora reparo que já enchi as
linhas bastantes para hoje.
Ando há muito com um intenso
desejo de arquivar na «Mensagem», o frontispício da nossa Igreja, não só como
ela se apresenta hoje, isto é, com a reparação que sofreu cerca de 1913 a 1915,
mas também como ela era antes daquela reparação. Creio ser difícil obter um
exemplar do aspecto antigo, o que torna mais valioso arquivar-se para a
posteridade, mas eu possuo um desses exemplares.
Mas quero uma fotografia da
igreja como ela se apresenta, já com os muros novos, caiados e embelezados com
a linda grade e o portão de ferro, colocados no tempo do saudoso Padre Miguel.
Tudo isto leva tempo. É preciso
conseguir que um fotógrafo tire a fotografia, depois mandar para a litografia a
fotografia, para ser fotogravada. Quanto à fotografia, incumbiu-se disso o Sr.
Américo Gonçalves dos Santos — não de fotografar a igreja, porque ele disso
nada sabe, mas por intermédio de outra pessoa. Estou esperançado que isto se
consiga por pouco dinheiro, porque «Mensagem» é pobre e tem muitos assinantes a
quem é difícil agarrar dinheiro, como se fossem ao dentista arrancar dente são.
Quanto às fotogravuras, tudo se ha-de arranjar com boa vontade, que é meia
despesa feita.
E até à semana, se Deus quizer.
(in Mensagem de 15 de fevereiro de 1960)
António Augusto de Miranda
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