Recordando, fevereiro de 1960


Quando se chega à minha idade, o corpo pede descanso. É verdade que eu tenho conhecido muitos novos que também o gozam, e na medida larga. Mas esses é por preguiça, que é pecado que nunca tive, graças a Deus (perdoem-me a confissão, que não é vaidade). Nunca gostei nem soube estar quedo. Em pequeno, eu era um brincalhão dos quatro costados. O brincar também é uma forma de actividade. Cada um na sua idade. Já depois, quando me mandaram para Aveiro, a fim de preparar as asas para voos mais altos, lá aos estudos não ligava. Os primeiros anos ocupei-os em adquirir conhecimentos de utilidade prática. O bom do Padre Jorge, a quem já aqui fiz referência, dava-me toda a liberdade. Vivendo em contacto com a ria e a gente da Beira-Mar, foi assim que aprendi a nadar; a guiar uma bateira à vara, a remo e à vela; a deitar foguetes… O leitor ri-se? Pois olhe que isto de saber deitar foguetes é uma prenda que de um momento para o outro nos pode fazer um jeitão. Que o diga o Sr. Professor David Lemos, que ainda é vivo (e que seja por muitos anos e bons e que eu lhos conte): se soubesse deitar foguetes comme il faut, como dizem os franceses, não teria a falta de dois dedos (dois ou três? — não me lembro bem) em uma das mãos, dedos que nuca mais lhe nasceram. Antes quebrar os dentes da primeira dentição, porque esses são sabiamente e gratuitamente substituídos por outros, e melhores.
Ora pois. Mas, além do nadar, de guiar barcos, de deitar foguetes, eu aprendi outras prendas, como tocar o sino às Avé-Marias (porque dobrar os sinos, não éra comigo ainda: eles eram pesados de mais para as minhas forças). E acima de todas as prendas que adquiri, eu aprendi música e, concomitantemente, a tocar violino, prenda de que tirei, mais tarde, utilíssimo resultado.
Ora aí está como um rapazinho que era cábula emérito, soube encher-se de prendas por uma autodidaxia que, se fosse hoje, teria sido galardoada. A minha família é que não ligou grande importância a essas prendas e tratou de me galardoar com o prémio que entendeu ser mais digno de mim: internou-me num seminário. Ali, desabituado, como ia, do contacto com os livros, lá fui satisfazendo, conforme pude, as exigências dos professores, e chegaria ao fim, se, com a idade, não surgisse problema capital: reconheci que não tinha vocação para a vida eclesiástica. Creio que foi a melhor decisão da minha vida, o abandono da carreira, por reconhecer falta de aptidão para ela, que considero a mais melindrosa de todas as carreiras que a um homem é dado abraçar. A mais melindrosa e por isso a mais difícil de desempenhar, por causa dos espinhos de que o seu caminho está semeado abundantemente. Nunca tomai encargo de ocupação quando não sentia forças para a cumprir. Por isso abandonei o Seminário.
Mas adquiri ali hábitos, afinei qualidades, que me foram de grande valia pela vida fora. O método no trabalho e a ciência da economia do tempo, ali aprendidos, sabendo distribui-los entre os deveres e o descanso, deram em resultado nunca me ter faltado o tempo para cumprir as minhas obrigações, sem excessos de esforço que prejudicam a saúde. Até que, atingi um período da vida em que o corpo pede descanso — não aquele descanso de que se precisa depois de muitas horas de trabalho e após o qual nos sentimos dispostos a recomeçar a nossa actividade — mas este descanso que o Estado concede aos seus servidores depois de muitos anos de esforço despendido ao seu serviço e que ele, bem ou mal, nos retribui com a aposentação.
A verdade é que eu já não tenho aquela facilidade de outro tempo em alinhavar duas regras, e vejo-me por vezes às aranhas para encontrar assunto com que encha as poucas linhas de que este jornalzinho dispõe para o meu «RECORDANDO».
Evidentemente que, se eu me puser a andar, com a imaginação, por terra e por mar, durante os muitos anos que servi o Estado, não me falta material para encher o papel. Mas isso interessaria a um ou outro leitor. A generalidade deles o que pretende é que eu não saia das vielas, dos caminhos, das estradas, dos tugúrios e das florestas da nossa abençoada terra, e que reproduza conversas que surpreendi ou as que entabulei, com os aldeões que a povoam, os quais já não são, na sua décima parte, aqueles que eu deixei quando daqui saí ou quando saíram de cá muitos dos conterrâneos ausentes em terras distantes.
Pareceu-me que satisfaria aos dois paladares, ir tocando alternadamente os assuntos do Ultramar e os de cá. Os de cá são tão poucos e a memória está já tão enfraquecida, que eu por vezes vejo-me e desejo-me para arranjar assunto para uma palestra.
… E agora reparo que já enchi as linhas bastantes para hoje.
Ando há muito com um intenso desejo de arquivar na «Mensagem», o frontispício da nossa Igreja, não só como ela se apresenta hoje, isto é, com a reparação que sofreu cerca de 1913 a 1915, mas também como ela era antes daquela reparação. Creio ser difícil obter um exemplar do aspecto antigo, o que torna mais valioso arquivar-se para a posteridade, mas eu possuo um desses exemplares.
Mas quero uma fotografia da igreja como ela se apresenta, já com os muros novos, caiados e embelezados com a linda grade e o portão de ferro, colocados no tempo do saudoso Padre Miguel.
Tudo isto leva tempo. É preciso conseguir que um fotógrafo tire a fotografia, depois mandar para a litografia a fotografia, para ser fotogravada. Quanto à fotografia, incumbiu-se disso o Sr. Américo Gonçalves dos Santos — não de fotografar a igreja, porque ele disso nada sabe, mas por intermédio de outra pessoa. Estou esperançado que isto se consiga por pouco dinheiro, porque «Mensagem» é pobre e tem muitos assinantes a quem é difícil agarrar dinheiro, como se fossem ao dentista arrancar dente são. Quanto às fotogravuras, tudo se ha-de arranjar com boa vontade, que é meia despesa feita.
E até à semana, se Deus quizer.
 (in Mensagem de 15 de fevereiro de 1960)
António Augusto de Miranda

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