Nosso Senhor e o ferreiro
Há dias, um acto piedoso
obrigou-me a levantar cedo para ir à igreja. Era o momento do aparecimento do
sol, que creio ser o do maior arrefecimento do dia. O céu, do lado nascente,
apresentava um aspecto de uma beleza extraordinária; uma ténue poalha de nuvens
estratificadas estendia-se por detrás da serra do Caramulo, que se destacava
sobre um fundo formado por todas as cores do Arco-Íris. Quadro tão maravilhoso
despertou a atenção do padeiro que a essa hora andava na faina da distribuição
do pão aos domicílios, e que parou a contemplar aquela maravilha, exclamando:
— Que lindo!
O quadro era, na verdade, de uma beleza arrebatadora
e foi o tema do rápido colóquio que tive com o prior, antes da missa, saboroso
cestinho de apetitosas cerejas, que saem da corbelha ligadas umas às outras.
Uma delas foi um delicioso conto que eu, em rapaz, captei da tradição oral,
delicioso salmo de louvor ao Artista Supremo Criador de todas as coisas, e que
eu, irresistivelmente passei para um livro de contos que a leviandade dos
verdes anos me levou a publicar.
Aí o tendes, que eu transcrevo do único exemplar que
ainda conservo:
«Uma tarde, depois que uma cálida temperatura do dia
começava a amenizar, pelo afrouxamento dos raios do sol e pelo sopro da viração
vespertina, Nosso Senhor, andando no santo mister de arrebanhar almas, passou à
porta da oficina de um ferreiro, reputado como o mais hábil naquelas
redondezas.
— Boa tarde, mestre! — disse-lhe Nosso Senhor.
O ferreiro, que estava à bigorna, de malho na mão, a
bater um ferro incandescente, parou de bater e, com o malho no ar e de
sobrecenho despeitado e má catadura, respondeu:
— Mestre?!... Mestre dos mestres, aliás!
Nosso Senhor, que já ia a uns cinco ou seis passos,
voltou-se, e dirigiu-se, envolto na sua serenidade, ao ferreiro. Este pousou o
malho no chão, e esperou, em atitude de superioridade ofendida, que aquele
desconhecido falasse.
Ele, com efeito, na sua voz suave, com a sua bondade
infinita a transparecer no olhar, aquele olhar que trazia em si todas as
doçuras, todas as consolações e todas as felicidades capazes de encherem o
infinito, falou-lhe desta maneira:
— Mestre, nunca te ufanes de saber muito ou mais que
os teus companheiros, porque o saber não tem limites. Sucede sempre, em
qualquer arte ou ciência, haver uns que sabem mais que outros numas coisas, e
menos em outras. Eu, por exemplo, que não sou ferreiro, e por isso devo saber
menos do que tu sabes na tua arte, vou dar-te uma lição que te deve aproveitar.
O ferreiro, boquiaberto, esperou, sem responder, a
concretização das palavras do desconhecido, a primeira pessoa que tentava
rebater-lhe a glória.
Passava nesse momento pela estrada uma velhinha, uma
pobre pedinte, com o dorso vergado para o chão sob o peso dos anos, e os
cabelos embranquecidos pelos frios de muitas dezenas de invernos. Nosso Senhor
chamou-a; e depois pegou nela e colocou-a na forja, sem ela lançar um queixume,
com grande admiração do ferreiro que cruzou os braços, na expectativa do
desfecho daquela aventura.
Quando a velhinha ficou reduzida a uma simples brasa,
a um carvão incandescente com forma de gente, Nosso Senhor tirou-a da forja e,
colocando-a sobre a bigorna, pegou num malho e pôs-se a batê-la, a amolgá-la,
voltando-a em todos os sentidos, como se faz ao metal que se quer trabalhar.
Tendo ela arrefecido de todo, Nosso Senhor deixou de
batê-la, e o ferreiro, a boca contraída pelo espanto, os olhos esbugalhados
pelo pasmo e admiração, viu saltar da bigorna uma rapariga linda como os
amores, fresca como uma rosa em manhã de Abril, ligeira e alegre como um passarinho,
que, cantando e pulando, lá foi pelo mundo, bendizendo o Senhor.
Quando Nosso Senhor se afastou, o ferreiro, cuja
vaidade ofendida não podia levar avante semelhante afronta, pegou na sua velha
mãe, encarquilhada e decrépita, a quem venerava. E, exultando já com a ideia de
a ver fresca e nova como a outra, submeteu-a à mesma operação e matou-a…
De aí para o futuro, quando aos ouvidos lhe chegava
alguma lisonja ou encómio à sua habilidade profissional, ele murmurava com
sinceridade e de lágrimas nos olhos:
— Não sei nada, não sei nada.
António Augusto de Miranda
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