Recordando, janeiro de 1960


No rebocador «Incomati», em que fizemos a travessia da Beira para o Chinde, não havia outros camarotes além dos destinados ao pessoal da tripulação. Os passageiros que a Companhia abusivamente embarcava em tal transporte acomodavam-se na sala de jantar, onde havia uns balcões à volta, suspensos, como prateleiras de uma loja de «bric-à-brac». Eu, como disse na última crónica, instalei-me, com a família, por especial obséquio do engenheiro maquinista, no camarote deste.
O mar, por má sorte, esteve um tanto picado durante a noite. O proprietário do camarote havia deixado ali um grande garrafão cheio de água, e sobre a mesa uma rima de papeis que, se não me engano, se referiam à navegação do barco. A certa altura da noite, quando o balanço aumentou, começaram os papeis a espalhar-se. Eu, que não preguei olho toda a noite porque precisava de vigiar e atender ao filho, que tinha apenas nove meses, e porque a mulher, de enjoada que ia, não podia cuidar de nada, procurei juntar os papeis — tarefa nada fácil, porque o vendaval era permanente.
Mas, além dos papeis, surgiu a dificuldade de atender ao garrafão de água, que também começou a deslocar-se e, a certas alturas, a girar de parede a parede, num vai-vem que me ameaçava quebrar alguma perna. O seu peso, de uns bons 25 a 30 quilos, não dava para menos. Mas aquele movimento acabou num dilúvio, porque o garrafão, num dos balanços mais pronunciados, escaqueirou-se de encontro ao tabique do camarote, e então a tragi-comédia atingiu o ponto culminante: a água inundou o camarote, e, no seu movimento de um lado para o outro, arrastava a papelada que se espalhava pelo pavimento.
Não sei como ficaram os papeis depois daquele pandemónio que durou muitas horas, porque, chegado o rebocador ao Chinde, o que nos interessava era pôr os pés em terra firme — e mais do que a mim, à pobre mulher que, tal era a sua aflição, chegou a proferir esta expressão durante a violência do balanço:
— Não se voltar o barco, para acabar este suplício!
O sofrimento dos enjoados é tal, que parece levá-los à beira da loucura. A uma senhora, que comnosco viajou noutra ocasião num navio de pequena tonelagem, ouvi emitir gritos de verdadeira louca, dizendo que se lhe tinha voltado na garganta a campainha (amígdala), e que ia morrer asfixiada!
Estes sofrimentos, por mais intensos que sejam, acabam logo que o passageiro põe os pés em terra. Foi o que sucedeu com a minha mulher — que, eu, nunca senti êsse mal de bordo.
No Chinde, instalámo-nos em um hotel, que funcionava em edifício de madeira e zinco e que, se bem me recordo, era o único da terra. Mas não era mau de todo e a proprietária era uma senhora bondosa e simpática. Ainda me lembro de que as traseiras do nosso quarto davam para uma quadra de talvez 15 ou 20 metros de lado, e ao fundo ficava um compartimento, cujo interior que a porta deixava vislumbrar, evocava, — tal era a sua negridão, com os pretos a entrar e a sair — a entrada do inferno.
Certo dia, a minha mulher perguntou à proprietária do hotel, que casa era aquela, tão negra, tão feia, onde só entravam e saíam pretos.
— É a cozinha, minha senhora! E, ao ver a expressão de espanto que minha mulher fez, apressou-se a acrescentar:
— «Mas não se assuste! A comida é deliciosa, como tem visto, e não contém coisa que faça mal! Os pretos trabalham melhor e mais contentes, quando se vêem sós. Em África as coisas são assim. É melhor a gente não ver como elas são feitas, uma vez que nos sabem bem e não nos fazem mal».
Minha mulher ouviu, mas nunca seguiu o conselho, durante os anos da sua permanência em África.
(in Mensagem de 15 de janeiro de 1960)
António Augusto de Miranda

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