No rebocador «Incomati», em que
fizemos a travessia da Beira para o Chinde, não havia outros camarotes além dos
destinados ao pessoal da tripulação. Os passageiros que a Companhia
abusivamente embarcava em tal transporte acomodavam-se na sala de jantar, onde
havia uns balcões à volta, suspensos, como prateleiras de uma loja de
«bric-à-brac». Eu, como disse na última crónica, instalei-me, com a família,
por especial obséquio do engenheiro maquinista, no camarote deste.
O mar, por má sorte, esteve um
tanto picado durante a noite. O proprietário do camarote havia deixado ali um
grande garrafão cheio de água, e sobre a mesa uma rima de papeis que, se não me
engano, se referiam à navegação do barco. A certa altura da noite, quando o
balanço aumentou, começaram os papeis a espalhar-se. Eu, que não preguei olho
toda a noite porque precisava de vigiar e atender ao filho, que tinha apenas
nove meses, e porque a mulher, de enjoada que ia, não podia cuidar de nada,
procurei juntar os papeis — tarefa nada fácil, porque o vendaval era permanente.
Mas, além dos papeis, surgiu a
dificuldade de atender ao garrafão de água, que também começou a deslocar-se e,
a certas alturas, a girar de parede a parede, num vai-vem que me ameaçava
quebrar alguma perna. O seu peso, de uns bons 25 a 30 quilos, não dava para
menos. Mas aquele movimento acabou num dilúvio, porque o garrafão, num dos
balanços mais pronunciados, escaqueirou-se de encontro ao tabique do camarote,
e então a tragi-comédia atingiu o ponto culminante: a água inundou o camarote,
e, no seu movimento de um lado para o outro, arrastava a papelada que se
espalhava pelo pavimento.
Não sei como ficaram os papeis
depois daquele pandemónio que durou muitas horas, porque, chegado o rebocador
ao Chinde, o que nos interessava era pôr os pés em terra firme — e mais do que
a mim, à pobre mulher que, tal era a sua aflição, chegou a proferir esta
expressão durante a violência do balanço:
— Não se voltar o barco, para
acabar este suplício!
O sofrimento dos enjoados é tal,
que parece levá-los à beira da loucura. A uma senhora, que comnosco viajou
noutra ocasião num navio de pequena tonelagem, ouvi emitir gritos de verdadeira
louca, dizendo que se lhe tinha voltado na garganta a campainha (amígdala), e que ia morrer asfixiada!
Estes sofrimentos, por mais
intensos que sejam, acabam logo que o passageiro põe os pés em terra. Foi o que
sucedeu com a minha mulher — que, eu, nunca senti êsse mal de bordo.
No Chinde, instalámo-nos em um
hotel, que funcionava em edifício de madeira e zinco e que, se bem me recordo,
era o único da terra. Mas não era mau de todo e a proprietária era uma senhora
bondosa e simpática. Ainda me lembro de que as traseiras do nosso quarto davam
para uma quadra de talvez 15 ou 20 metros de lado, e ao fundo ficava um
compartimento, cujo interior que a porta deixava vislumbrar, evocava, — tal era
a sua negridão, com os pretos a entrar e a sair — a entrada do inferno.
Certo dia, a minha mulher perguntou
à proprietária do hotel, que casa era aquela, tão negra, tão feia, onde só
entravam e saíam pretos.
— É a cozinha, minha senhora! E,
ao ver a expressão de espanto que minha mulher fez, apressou-se a acrescentar:
— «Mas não se assuste! A comida é
deliciosa, como tem visto, e não contém coisa que faça mal! Os pretos trabalham
melhor e mais contentes, quando se vêem sós. Em África as coisas são assim. É
melhor a gente não ver como elas são feitas, uma vez que nos sabem bem e não
nos fazem mal».
Minha mulher ouviu, mas nunca
seguiu o conselho, durante os anos da sua permanência em África.
(in Mensagem de 15 de janeiro de
1960)
António Augusto de Miranda
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