Quando o navio, depois de
bonançosa viagem de uma noite desde Bombaim até Nova Goa, ficou amarrado ao
cais, minha mulher recomendou-me que, ao desembarcar, não me esquecesse de pôr
o pé direito à frente. Eram nossos companheiros de viagem, desde Lourenço
Marques, o então capitão Ilídio Coelho, a esposa e o filho, que regula pela
idade do meu mais velho; e as senhoras tinham tido por tema da recente conversa
a influência do pé que vai à frente quando entramos em qualquer parte.
Tudo a postos, a bagagem na
ponte, relancei um último olhar à margem fronteira, verdejante, do Mandovi, que
eu contemplava pela primeira vez, e dirigimo-nos para a saída.
Fui o primeiro a desembarcar e,
mal acabava de pôr o pé em terra, ouço a mesma voz feminina em tom de
repreensão:
— António! Puseste o pé esquerdo!
Nesse mesmo dia — 27 de Novembro
de 1929 — tomei posse do lugar de juiz de direito da comarca de Salcete, para
onde fôra transferido da sertaneja comarca do Bié, em Angola.
Não sei se algum dos meus
leitores poderá avaliar a sensação que experimenta um juiz que, apenas com dois
anos de prática numa comarca da categoria do Bié se vê, de repente, à frente da
comarca mais importante da Índia, uma das mais difíceis de todo o império, pela
natureza e variedade do serviço. A comarca de Salcete é cognominada a «Atenas
Luso Indiana», pelo seu prestígio intelectual entre as demais, como a cidade
helénica, capital da antiga Ática, metrópole da cultura grega antiga. Nesta
comarca há para cima de 60 advogados, contando, é claro, os que vivem nas
aldeias, mas o seu quadro era, antes de 1920, de 120 advogados! Não sei se o
quadro chegou a estar preenchido, mas no meu tempo o número de advogados era
seguramente de algumas dezenas. Alguns destes advogados, embora provisionários,
isto é, não formados em direito, eram dos mais competentes que encontrei em
todo o Ultramar. Por tudo isto, a comarca de Salcete é das mais trabalhosas.
Quando ali entrei, nada, nem
ninguém, me era conhecido; nem as pessoas nem o meio. Grande afluência de
pessoas à minha posse, como é costume. Entre os assistentes, um cavalheiro
alto, forte, de barba branca, apresentação distinta, que eu vira na véspera, em
Pangim, quando ali desembarquei, olhando-me com insistência. Este cavalheiro
cumprimentou-me; e, logo a seguir, o meu substituto, que acabara de me
transmitir os poderes judiciais, fez a apresentação:
— O Sr. B. da C., distinto
advogado da comarca…
Terminados os cumprimentos,
entra-me pelo gabinete o delegado, indignado, esbaforido, transpirando
indignação:
— Sr. Doutor juiz! Acabam de
abusar da boa-fé de V. Ex.ª, porque V. Ex.ª apertou agora a mão a um homem que
eu requeiro que seja julgado sumàriamente já, surpreendido em flagrante delito
de desobediência!
É que o Sr. B. da C., advogado da
comarca, membro de uma das mais distintas famílias de Margão, presidente da
direcção de uma instituição hospitalar de grande vulto, estava a ser sindicado
por pretensas irregularidades cometidas no exercício daquele cargo, e o
sindicante tinha-lhe imposto residência fora da comarca, por isso eu o tinha
visto em Pangim, na véspera, olhando muito para mim.
O Sr. B. da C., ou porque
estivesse saudoso da família (que, aliás, não morava longe, pois de Pangim a
Margão, sede da comarca de Salcete, são uns escassos 20 quilómetros) ou fosse
por outra razão, transgrediu a ordem, o que, nos termos disciplinares, envolvia
desobediência à autoridade competente, pelo que o delegado da comarca requereu
o seu imediato julgamento.
Assim se fez. Um saco de penas
lançadas ao vento não se espalharia mais rapidamente do que a notícia deste
julgamento. Sala a abarrotar, uns curiosos, outros parentes, outros
interessados no caso da sindicância, ao qual este julgamento se prendia. A audiência
foi um marulhar de paixões: o delegado, pela sua função de acusador público e
porque intervinha na sindicância; o advogado de defesa, juiz substituto,
brâmane de primeira água, jurisconsulto de valor, que fez uma defesa brilhante
e enérgica; o espaço dentro da teia, cheio de advogados; e, fora da teia, à cunha até às escadas.
Só eu estava calmo, porque não
conhecia ninguém nem os factos que se debatiam, naquele baptismo de fogo que eu
podia ter evitado se tivesse desembarcado com o pé direito…
Julgamento sumário, mas que foi
prolongado, pois meteu pela noite dentro, tendo começado por meio da tarde,
constituiu ele o início da minha acção naquela comarca, e com tal disposição
que, logo nos primeiros dias, requeri transferência. Dentro de um ano, eu estava
transferido para Lourenço Marques.
Passados anos, voltei à Índia,
mas noutra situação e com sede na capital, onde me conservei 5 anos
(in Mensagem de 15 de julho de
1958)
António Augusto de Miranda
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