Recordando, julho de 1958


Quando o navio, depois de bonançosa viagem de uma noite desde Bombaim até Nova Goa, ficou amarrado ao cais, minha mulher recomendou-me que, ao desembarcar, não me esquecesse de pôr o pé direito à frente. Eram nossos companheiros de viagem, desde Lourenço Marques, o então capitão Ilídio Coelho, a esposa e o filho, que regula pela idade do meu mais velho; e as senhoras tinham tido por tema da recente conversa a influência do pé que vai à frente quando entramos em qualquer parte.
Tudo a postos, a bagagem na ponte, relancei um último olhar à margem fronteira, verdejante, do Mandovi, que eu contemplava pela primeira vez, e dirigimo-nos para a saída.
Fui o primeiro a desembarcar e, mal acabava de pôr o pé em terra, ouço a mesma voz feminina em tom de repreensão:
— António! Puseste o pé esquerdo!
Nesse mesmo dia — 27 de Novembro de 1929 — tomei posse do lugar de juiz de direito da comarca de Salcete, para onde fôra transferido da sertaneja comarca do Bié, em Angola.
Não sei se algum dos meus leitores poderá avaliar a sensação que experimenta um juiz que, apenas com dois anos de prática numa comarca da categoria do Bié se vê, de repente, à frente da comarca mais importante da Índia, uma das mais difíceis de todo o império, pela natureza e variedade do serviço. A comarca de Salcete é cognominada a «Atenas Luso Indiana», pelo seu prestígio intelectual entre as demais, como a cidade helénica, capital da antiga Ática, metrópole da cultura grega antiga. Nesta comarca há para cima de 60 advogados, contando, é claro, os que vivem nas aldeias, mas o seu quadro era, antes de 1920, de 120 advogados! Não sei se o quadro chegou a estar preenchido, mas no meu tempo o número de advogados era seguramente de algumas dezenas. Alguns destes advogados, embora provisionários, isto é, não formados em direito, eram dos mais competentes que encontrei em todo o Ultramar. Por tudo isto, a comarca de Salcete é das mais trabalhosas.
Quando ali entrei, nada, nem ninguém, me era conhecido; nem as pessoas nem o meio. Grande afluência de pessoas à minha posse, como é costume. Entre os assistentes, um cavalheiro alto, forte, de barba branca, apresentação distinta, que eu vira na véspera, em Pangim, quando ali desembarquei, olhando-me com insistência. Este cavalheiro cumprimentou-me; e, logo a seguir, o meu substituto, que acabara de me transmitir os poderes judiciais, fez a apresentação:
— O Sr. B. da C., distinto advogado da comarca…
Terminados os cumprimentos, entra-me pelo gabinete o delegado, indignado, esbaforido, transpirando indignação:
— Sr. Doutor juiz! Acabam de abusar da boa-fé de V. Ex.ª, porque V. Ex.ª apertou agora a mão a um homem que eu requeiro que seja julgado sumàriamente já, surpreendido em flagrante delito de desobediência!
É que o Sr. B. da C., advogado da comarca, membro de uma das mais distintas famílias de Margão, presidente da direcção de uma instituição hospitalar de grande vulto, estava a ser sindicado por pretensas irregularidades cometidas no exercício daquele cargo, e o sindicante tinha-lhe imposto residência fora da comarca, por isso eu o tinha visto em Pangim, na véspera, olhando muito para mim.
O Sr. B. da C., ou porque estivesse saudoso da família (que, aliás, não morava longe, pois de Pangim a Margão, sede da comarca de Salcete, são uns escassos 20 quilómetros) ou fosse por outra razão, transgrediu a ordem, o que, nos termos disciplinares, envolvia desobediência à autoridade competente, pelo que o delegado da comarca requereu o seu imediato julgamento.
Assim se fez. Um saco de penas lançadas ao vento não se espalharia mais rapidamente do que a notícia deste julgamento. Sala a abarrotar, uns curiosos, outros parentes, outros interessados no caso da sindicância, ao qual este julgamento se prendia. A audiência foi um marulhar de paixões: o delegado, pela sua função de acusador público e porque intervinha na sindicância; o advogado de defesa, juiz substituto, brâmane de primeira água, jurisconsulto de valor, que fez uma defesa brilhante e enérgica; o espaço dentro da teia, cheio de advogados; e, fora da teia, à cunha até às escadas.
Só eu estava calmo, porque não conhecia ninguém nem os factos que se debatiam, naquele baptismo de fogo que eu podia ter evitado se tivesse desembarcado com o pé direito…
Julgamento sumário, mas que foi prolongado, pois meteu pela noite dentro, tendo começado por meio da tarde, constituiu ele o início da minha acção naquela comarca, e com tal disposição que, logo nos primeiros dias, requeri transferência. Dentro de um ano, eu estava transferido para Lourenço Marques.
Passados anos, voltei à Índia, mas noutra situação e com sede na capital, onde me conservei 5 anos
(in Mensagem de 15 de julho de 1958)
António Augusto de Miranda

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