Permitam-me os meus poucos
leitores que eu hoje falte ao prometido na última crónica, sobre a minha viagem
de Tete para Mossâmedes. Fica para a outra vez.
Por hoje, quero recordar o que me
sugeriu a majestosa e deslumbrante procissão que há dias se realizou em Aveiro,
um pouco deslocada da sua data tradicional, para ser integrada nas magníficas
festas comemorativas do Milenário de Aveiro e do duplo Centenário da sua elevação
a cidade.
A procissão de Santa Joana
Princesa (a ela me quero referir) é uma das mais belas do país; por isso, e
pelo alto significado que esta festa tem para a história de Aveiro, de que a
Santa Princesa é padroeira, como a Rainha Santa Isabel é para a de Coimbra, sua
padroeira também, inspirada foi a sua integração naquelas festas, nas quais a
procissão de Santa Joana ocupou decerto o cume, pela beleza e significado que a
revestiram.
Sempre foi bela festa de Santa
Joana, como belas, bem organizadas, costumam ser, as festas religiosas que se
realizam naquela cidade. Não conheço terra que mais fervor e brio ponha nas
festas de igreja e nas procissões, pondo à banda as de maior fama, daquelas que
tenho presenceado.
Mas não vá pensar, quem não
conhece, como eu, a gente de Aveiro, onde passei parte da adolescência e da
mocidade, que as festas daquela terra são, como em muitas outras, mais o
produto do exibicionismo profano do que da religiosidade. Também há quem
suponha que Aveiro é uma terra de ateus ou pouco menos.
Nada disso. Aveiro é uma terra
marinha, por isso a sua população é religiosa. Muitos dos seus filhos vivem
permanentemente da ria, que alimenta muitas centenas de famílias que quase não
conhecem mais do que o que não passa além do círculo visual que tem por centro
a proa da sua bateira ou do seu barco moliceiro. Outros, por educação
ancestral, emigram para outras paragens, mas sempre ligados ao mar, que
percorrem em todos os sentidos, na navegação de longo curso. Não vai longe o
tempo em que algumas dezenas de homens de Aveiro punham em movimento os barcos
das companhias de pesca que actuavam nas dunas que se estendem da Costa Nova
até à Torreira. Ainda me lembro de, em conversa amena e pitoresca com um desses
homens, que era parente do Padre Jorge Pinho Vinagre, de quem já falei por mais
do que uma vez, lhe ouvir dizer:
— Quando vamos ao mar, e vemos
desaparecer as casas e quase tudo que recorda a vida que se agita em terra, da
cidade de Aveiro a única coisa que se destaca é a capela do Senhor das Barrocas
e é com o Senhor das Barrocas que mais nos apegamos em maré de perigo. Com o
Senhor das Barrocas e com a Nossa Senhora das Areias e às vezes também com a
Nossa Senhora da Saúde da Costa Nova…
Mas o Senhor das Barrocas é que
era o mais lembrado, pelos pescadores das campanhas, decerto por a sua capela
ser a que melhor se via do mar largo, pela sua altura e situação.
Outras invocações acodem ao
espírito da gente do mar, pedindo a protecção de Deus ou de sua Mãe. Não
conheço a origem da festa das Entregas dos Ramos no ciclo do Natal,
particularidade de Aveiro (suponho eu), mas não me repugna que essas entregas,
que têm o seu quê de profano à mistura, tirem a sua origem da devoção
religiosa, e a uma devoção religiosa obedecem.
É próprio de todos os povos a
tendência para aliar actos e manifestações profanas às suas festas religiosas.
E quantas vezes quem lida com as pessoas e as coisas do mar, durante a faina,
ouve ou profere, de mistura com as mais devotas e sinceras invocações à Virgem
Nossa Senhora e aos santos da sua devoção, as mais rudes pragas que os próprios
vocabulários não registam!
O homem do mar é rude, é duro,
como rudes e duros são os trabalhos que o cercam, mas que êle se habitua a
vencer com o próprio esforço e com a ajuda de Deus. Isto lhe dá aquela
independência que muitos não compreendem, e a religiosidade que o caracteriza.
Por isso as festas dos marítimos
são festas sui generis, como só eles
sabem fazer, e as de Aveiro revestem característica especial, pela ordem,
respeito, correcção, beleza, como só a gente de Aveiro sabe imprimir às suas
festas religiosas.
(in Mensagem de 15 de julho de 1959)
António Augusto de Miranda
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