Recordando, julho de 1960


Calino, se tivesse de emitir a sua opinião sobre a Ponte da Fontinha, diria, com certeza:
— Para tudo é preciso sorte: não são só as pessoas, cujo destino está talhado no livro invisível; até os animais, até as coisas.
Para Calino, o destino da Ponte da Fontinha está talhado, tinha de ser este lastimável abandono a que chegou, e por isso de nada vale nós revoltarmo-nos contra êle. Há que aceitá-lo, porque não podemos alterar o curso do destino.
Mas nós — isto é, eu e as pessoas que como eu não aceitam o fatalismo como regra da existência — não podemos conformar-nos com o estado de abandono a que pelos homens (e não pelo destino) foi votada a Ponte da Fontinha. Por amor da ponte? Evidentemente que não! A ponte não ocupa, no conjunto em que está situada, um lugar que lhe dê direito, só por si, a que duas câmaras, assoberbadas com encargos de mais valia, sacrifiquem alguns centos de escudos, todos os anos, com aquela pobre decrépita que, apesar de velhinha, grandes serviços tem prestado, e ainda poderá continuar a prestar, a velhos e novos, se aquelas câmaras se resolverem a fazer o que devia ter sido feito logo que lhes foi imposto o encargo da conservação da ponte: lançarem, todos os anos, nos seus orçamentos, uma verba destinada àquele fim.
Não é, pois, pela ponte em si, a qual, no fim de contas, não é inteiramente destituída de valor no quadro panorâmico em que assenta, merecendo, se vivêssemos num país rico, a despeza de conservação, só por êsse motivo. Mas a ponte é necessária como meio de ligação das duas margens do Vouga, para por ela passarem pessoas, animais, carros, tudo o que é possível transportar de uma margem a outra do rio. A sua inutilização representaria um incalculável prejuízo para todos quantos da ponte necessitam, pela extensão de caminho que teriam de percorrer na falta dela. É um elemento de interesse público, e, como tal, digno de ser conservado.
A Ponte da Fontinha foi construída por uma família abastada, residente no lugar que lhe deu o nome: — a Fontinha, pertencente à freguesia de Segadães, concelho de Águeda. Enquanto foi propriedade particular nunca foi precisa uma reclamação por causa do estado da ponte, porque os proprietários tinham o cuidado de todos os anos a mandar reparar, nunca esperando que surgisse qualquer pretexto para reclamação. Por isso a ponte sempre se conservou em bom estado, durante os 50 anos que durou a concessão. É certo que os concessionários cobravam uma taxa de portágem, que ajudava à despesa de conservação e que as Câmaras não cobram. Mas, se o mal é esse, quem nos dera voltar ao regime da taxa de portagem! Porque podíamos passar a ponte em qualquer veículo e com qualquer peso, sem preocupações nem receio de irmos parar ao fundo do poço que as águas do rio formam debaixo da extremidade sul da ponte.
Caducada a concessão, ingressou a ponte no património das Câmaras Municipais de Águeda e Albergaria-a-Velha, às quais pertencem os caminhos confinantes com o rio, que a ponte liga, ficando àquelas autarquias o encargo da sua conservação, mas sem direito a cobrar qualquer taxa de portagem, o que representava uma compensação.
É certo que as câmaras, como de uma maneira geral todas as câmaras, estão assoberbadas com encargos que lhes coarctam a acção. No entanto, não deve ser de grande monta o custo da reparação da Ponte da Fontinha,repartido pelas duas câmaras, sendo um encargo quáse insensível se for lançada todos os anos no orçamento uma verba que se calcule suficiente para esse encargo.
Ora todo este relambório vem a propósito. Sim! Vem a propósito e muito a propósito! Não costumo lançar palavras ao vento e ainda está por nascer quem com justiça me possa apelidar de maçador nas falas, que são poucas, e de injusto nas decisões, que foram muitas. É o caso da Ponte da Fontinha, a continuar a incúria a que foi lançada, não tardará que caia em ruínas. Será isto o que as câmaras desejam? Na verdade, desaparecida a ponte, acabam-se os encargos, porque não dá despesa aquilo que não existe.
O mal precisa de ser olhado muito a sério e por vários motivos. Em primeiro lugar, é a catástrofe que ali se está a preparar. Do lado de Águeda, segundo me informaram, nem um aviso está afixado para os carros pesados não demandarem a ponte, como fez a Câmara de Albergaria, que mandou colocar êsse aviso em Alquerubim, ao começo da estrada que vai para a Fontinha.
Depois, há a incúria de certos motoristas e a inconsideração e imprevidência de outros, que se lançam a atravessar uma ponte, fiados na sua boa estrela, mesmo contra avisos e prevenções de perigo iminente.
Ao fim e ao cabo, de quem é a culpa?
Gostaria que me ouvisse quem tem ouvidos para ouvir; e não gostaria menos de ouvir a voz da sua consciência.
(in Mensagem de 15 de julho de 1960)
António Augusto de Miranda

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