Calino, se tivesse de emitir a
sua opinião sobre a Ponte da Fontinha, diria, com certeza:
— Para tudo é preciso sorte: não
são só as pessoas, cujo destino está talhado no livro invisível; até os
animais, até as coisas.
Para Calino, o destino da Ponte
da Fontinha está talhado, tinha de ser este lastimável abandono a que chegou, e
por isso de nada vale nós revoltarmo-nos contra êle. Há que aceitá-lo, porque
não podemos alterar o curso do destino.
Mas nós — isto é, eu e as pessoas
que como eu não aceitam o fatalismo como regra da existência — não podemos
conformar-nos com o estado de abandono a que pelos homens (e não pelo destino)
foi votada a Ponte da Fontinha. Por amor da ponte? Evidentemente que não! A
ponte não ocupa, no conjunto em que está situada, um lugar que lhe dê direito,
só por si, a que duas câmaras, assoberbadas com encargos de mais valia,
sacrifiquem alguns centos de escudos, todos os anos, com aquela pobre decrépita
que, apesar de velhinha, grandes serviços tem prestado, e ainda poderá
continuar a prestar, a velhos e novos, se aquelas câmaras se resolverem a fazer
o que devia ter sido feito logo que lhes foi imposto o encargo da conservação
da ponte: lançarem, todos os anos, nos seus orçamentos, uma verba destinada
àquele fim.
Não é, pois, pela ponte em si, a
qual, no fim de contas, não é inteiramente destituída de valor no quadro
panorâmico em que assenta, merecendo, se vivêssemos num país rico, a despeza de
conservação, só por êsse motivo. Mas a ponte é necessária como meio de ligação
das duas margens do Vouga, para por ela passarem pessoas, animais, carros, tudo
o que é possível transportar de uma margem a outra do rio. A sua inutilização
representaria um incalculável prejuízo para todos quantos da ponte necessitam,
pela extensão de caminho que teriam de percorrer na falta dela. É um elemento
de interesse público, e, como tal, digno de ser conservado.
A Ponte da Fontinha foi
construída por uma família abastada, residente no lugar que lhe deu o nome: — a
Fontinha, pertencente à freguesia de Segadães, concelho de Águeda. Enquanto foi
propriedade particular nunca foi precisa uma reclamação por causa do estado da
ponte, porque os proprietários tinham o cuidado de todos os anos a mandar
reparar, nunca esperando que surgisse qualquer pretexto para reclamação. Por
isso a ponte sempre se conservou em bom estado, durante os 50 anos que durou a
concessão. É certo que os concessionários cobravam uma taxa de portágem, que ajudava
à despesa de conservação e que as Câmaras não cobram. Mas, se o mal é esse,
quem nos dera voltar ao regime da taxa de portagem! Porque podíamos passar a
ponte em qualquer veículo e com qualquer peso, sem preocupações nem receio de
irmos parar ao fundo do poço que as águas do rio formam debaixo da extremidade
sul da ponte.
Caducada a concessão, ingressou a
ponte no património das Câmaras Municipais de Águeda e Albergaria-a-Velha, às
quais pertencem os caminhos confinantes com o rio, que a ponte liga, ficando
àquelas autarquias o encargo da sua conservação, mas sem direito a cobrar
qualquer taxa de portagem, o que representava uma compensação.
É certo que as câmaras, como de
uma maneira geral todas as câmaras, estão assoberbadas com encargos que lhes
coarctam a acção. No entanto, não deve ser de grande monta o custo da reparação
da Ponte da Fontinha,repartido pelas duas câmaras, sendo um encargo quáse
insensível se for lançada todos os anos no orçamento uma verba que se calcule
suficiente para esse encargo.
◊
Ora todo este relambório vem a
propósito. Sim! Vem a propósito e muito a propósito! Não costumo lançar
palavras ao vento e ainda está por nascer quem com justiça me possa apelidar de
maçador nas falas, que são poucas, e de injusto nas decisões, que foram muitas.
É o caso da Ponte da Fontinha, a continuar a incúria a que foi lançada, não
tardará que caia em ruínas. Será isto o que as câmaras desejam? Na verdade,
desaparecida a ponte, acabam-se os encargos, porque não dá despesa aquilo que
não existe.
O mal precisa de ser olhado muito
a sério e por vários motivos. Em primeiro lugar, é a catástrofe que ali se está
a preparar. Do lado de Águeda, segundo me informaram, nem um aviso está afixado
para os carros pesados não demandarem a ponte, como fez a Câmara de Albergaria,
que mandou colocar êsse aviso em Alquerubim, ao começo da estrada que vai para
a Fontinha.
Depois, há a incúria de certos
motoristas e a inconsideração e imprevidência de outros, que se lançam a
atravessar uma ponte, fiados na sua boa estrela, mesmo contra avisos e
prevenções de perigo iminente.
Ao fim e ao cabo, de quem é a
culpa?
Gostaria que me ouvisse quem tem
ouvidos para ouvir; e não gostaria menos de ouvir a voz da sua consciência.
(in Mensagem de 15 de julho de 1960)
António Augusto de Miranda
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