Aveiro e a Fundação Gulbenkian
DESCULPEM-ME os meus poucos
leitores por eu hoje não voltar ao assunto da última crónica, que versou sobre
recordações do Ultramar, tendo ficado com a palavra
reservada para falar sobre as encantadoras e nunca esquecíveis terras do
Bié. Outro assunto se apresenta, que já há muito eu desejo aflorar e que um
justo reparo do «Correio do Vouga», de 1 de Julho corrente, me acicatou a
vontade, para o não adiar por mais tempo.
A benemérita Fundação Calouste
Gulbenkian estendeu a Aveiro a generosa acção da sua actividade, quer
subsidiando, de forma sensível, a criação do Conservatório regional de Aveiro,
que começou a funcionar o ano passado, quer incluindo esta cidade no número das
terras beneficiadas com o V Festival Gulbenkian de Música, trazendo ali a
famosa Orquestra Sinfónica da Rádio de Hamburgo, que deu um concerto no Teatro
Aveirense no dia 27 de Junho último.
Eu, amante dedicado da Música,
que também cultivei, na modéstia das minhas possibilidades, quando a idade o
permitia, não resisti à chamada, deixando por umas horas a minha tebaida, para
deliciar os ouvidos e inundar a alma das delícias da sublime arte dos sons. Mas
uma decepção me esperava, ao contemplar os lugares vagos no teatro, caindo-me a
alma aos pés ao recordar os meus tempos de estudante, quando Aveiro marcava
como o centro de uma região rica de valores na cultura da música e onde se
estabeleciam rivalidades entre os agrupamentos musicais, provocando o estímulo
pelo aperfeiçoamento da arte. O distrito de Aveiro era o mais rico alfobre das
bandas civis do país. Além das esplêndidas filarmónicas da cidade, eu recordo a
afamada banda da Fábrica da Vista Alegre, cujos componentes gozavam de regalias
que os dispensavam do trabalho na fábrica para poderem comparecer nos ensaios,
bem como a banda de S. Tiago de Riba Ul, constituída por modestos operários dos
diversos misteres da freguesia. E outras, que seria abuso de paciência
enumerar. Ainda bem perto dos nossos dias, D. Amélia Marques Pinto, distinta
violinista e portadora de uma bela tradição, filha do grande violinista e
compositor portuense Augusto Marques Pinto, manteve em Aveiro uma escola
particular de música, na qual, durante vários anos ensinou piano, violino e
creio que composição. Ensinou e com muita proficiência, muitas dezenas de
alunos, que devem ter deixado marca na camada do seu tempo. Que é feito deles?
Foi mais ou menos na mesma época que António dos Santos Lé organizou uma banda
de larga projecção pelo número dos seus componentes e pela adopção de
instrumentos ainda não usados no meio. Essa banda deixou vincada sua existência
na memória dos contemporâneos, embora tivesse tido uma existência efémera. E
no teatro? Fala-se muito para aí numas exibições de há um lustro. Eu nesse tempo
estava no Ultramar, arredado do contacto com as coisas de Aveiro, por isso
apenas posso falar das do meu tempo, de há mais de 50 anos; e poucas, mesmo
muito poucas pessoas das que ainda vivem, desse tempo, se lembrarão do que foi
esse período das representações nesta cidade, em que se revelaram verdadeiros
valores na arte de Talma e na música.
Mas… aonde vou eu? O espaço está
a esgotar-se e eu tenho ainda muito que dizer e ainda não toquei no principal.
Lamenta o cronista dos «Postais
em Zig-Zag» do «Correio do Vouga» o caso que abordo, nos seguintes termos:
«Já não é a primeira vez que o caso sucede escandalosamente entre nós. E
em ambas as ocasiões, eu assisti ao espectáculo de alma confrangida, com o
rubor a querer vir-me à face contrafeita. Francamente, era indigno, era uma
vergonha, era um escândalo que uma cidade que se ufana de ser progressivamente
culta se manifestasse tão alheada dum invulgar espectáculo de arte».
Quer dizer: a benemérita Fundação
Gulbenkian caiu no logro; atraída pela fama da cidade que goza de uma tradição
brilhante no culto da música, presenteou-a com uma dádiva que ela não quis apreciar. Sim: não quis apreciar, porque se a população de Aveiro não encheu o
teatro na noite de 27 de Junho, para apreciar boa música, não foi por
ignorância nem por motivo que lhe dificultasse o acesso ao concerto. No fim e
ao cabo, a cidade praticou um gesto de ingratidão para com a instituição que a
distinguiu e está concorrendo para a manutenção do seu Conservatório.
É mais um sinal do materialismo
que governa o mundo, a cuja influência esta cidade de artistas, que toda ela é,
pela sua posição, um quadro de beleza rara, não pôde resistir.
Senhor Dr. Azeredo Perdigão:
perdõe à minha terra esta leviandade. V. Ex.ª é um homem superior e invulgar.
Vossa Excelência um dia teve a paciência de me mostrar o seu escritório. Nunca
vi coisa, no género, tão perfeita. Tratando-se do escritório de um advogado de
renome e farta clientela, o trabalho, que ali deve afluir em manancial
permanente, é facilitado pela perfeição do maquinismo. Aquilo não é um
escritório; é uma máquina genialmente montada, em que cada peça ocupa o seu
lugar e acorre à chamada com a precisão de um cérebro. Por isso, quando
Calouste Gulbenkian descobriu V. Ex.ª para montar a máquina da distribuição dos
benefícios da sua incomensurável fortuna, ele foi tocado da centelha do génio.
Foi genial a escolha e genial tem sido a distribuição da dádiva. Tenho-a
acompanhado, dia a dia, essa admirável distribuição. Pela parte que me toca,
agradeço a V. Ex.ª o muito que já concedeu à minha linda terra, que outra mais
linda não há em Portugal. Terra tão linda não pode produzir gente ingrata. Ela
saberá compreender e reconhecer quanto V. Ex.ª é generoso e gentil para com
ela; e V. Ex.ª reconhecerá quanto ela lhe está agradecida.
(in Mensagem de 15 de julho de 1961)
António Augusto de Miranda
Sem comentários:
Enviar um comentário