Recordando, julho de 1961


Aveiro e a Fundação Gulbenkian
DESCULPEM-ME os meus poucos leitores por eu hoje não voltar ao assunto da última crónica, que versou sobre recordações do Ultramar, tendo ficado com a palavra reservada para falar sobre as encantadoras e nunca esquecíveis terras do Bié. Outro assunto se apresenta, que já há muito eu desejo aflorar e que um justo reparo do «Correio do Vouga», de 1 de Julho corrente, me acicatou a vontade, para o não adiar por mais tempo.
A benemérita Fundação Calouste Gulbenkian estendeu a Aveiro a generosa acção da sua actividade, quer subsidiando, de forma sensível, a criação do Conservatório regional de Aveiro, que começou a funcionar o ano passado, quer incluindo esta cidade no número das terras beneficiadas com o V Festival Gulbenkian de Música, trazendo ali a famosa Orquestra Sinfónica da Rádio de Hamburgo, que deu um concerto no Teatro Aveirense no dia 27 de Junho último.
Eu, amante dedicado da Música, que também cultivei, na modéstia das minhas possibilidades, quando a idade o permitia, não resisti à chamada, deixando por umas horas a minha tebaida, para deliciar os ouvidos e inundar a alma das delícias da sublime arte dos sons. Mas uma decepção me esperava, ao contemplar os lugares vagos no teatro, caindo-me a alma aos pés ao recordar os meus tempos de estudante, quando Aveiro marcava como o centro de uma região rica de valores na cultura da música e onde se estabeleciam rivalidades entre os agrupamentos musicais, provocando o estímulo pelo aperfeiçoamento da arte. O distrito de Aveiro era o mais rico alfobre das bandas civis do país. Além das esplêndidas filarmónicas da cidade, eu recordo a afamada banda da Fábrica da Vista Alegre, cujos componentes gozavam de regalias que os dispensavam do trabalho na fábrica para poderem comparecer nos ensaios, bem como a banda de S. Tiago de Riba Ul, constituída por modestos operários dos diversos misteres da freguesia. E outras, que seria abuso de paciência enumerar. Ainda bem perto dos nossos dias, D. Amélia Marques Pinto, distinta violinista e portadora de uma bela tradição, filha do grande violinista e compositor portuense Augusto Marques Pinto, manteve em Aveiro uma escola particular de música, na qual, durante vários anos ensinou piano, violino e creio que composição. Ensinou e com muita proficiência, muitas dezenas de alunos, que devem ter deixado marca na camada do seu tempo. Que é feito deles? Foi mais ou menos na mesma época que António dos Santos Lé organizou uma banda de larga projecção pelo número dos seus componentes e pela adopção de instrumentos ainda não usados no meio. Essa banda deixou vincada sua existência na memória dos contemporâneos, embora tivesse tido uma existência efémera. E no teatro? Fala-se muito para aí numas exibições de há um lustro. Eu nesse tempo estava no Ultramar, arredado do contacto com as coisas de Aveiro, por isso apenas posso falar das do meu tempo, de há mais de 50 anos; e poucas, mesmo muito poucas pessoas das que ainda vivem, desse tempo, se lembrarão do que foi esse período das representações nesta cidade, em que se revelaram verdadeiros valores na arte de Talma e na música.
Mas… aonde vou eu? O espaço está a esgotar-se e eu tenho ainda muito que dizer e ainda não toquei no principal.
Lamenta o cronista dos «Postais em Zig-Zag» do «Correio do Vouga» o caso que abordo, nos seguintes termos:
«Já não é a primeira vez que o caso sucede escandalosamente entre nós. E em ambas as ocasiões, eu assisti ao espectáculo de alma confrangida, com o rubor a querer vir-me à face contrafeita. Francamente, era indigno, era uma vergonha, era um escândalo que uma cidade que se ufana de ser progressivamente culta se manifestasse tão alheada dum invulgar espectáculo de arte».
Quer dizer: a benemérita Fundação Gulbenkian caiu no logro; atraída pela fama da cidade que goza de uma tradição brilhante no culto da música, presenteou-a com uma dádiva que ela não quis apreciar. Sim: não quis apreciar, porque se a população de Aveiro não encheu o teatro na noite de 27 de Junho, para apreciar boa música, não foi por ignorância nem por motivo que lhe dificultasse o acesso ao concerto. No fim e ao cabo, a cidade praticou um gesto de ingratidão para com a instituição que a distinguiu e está concorrendo para a manutenção do seu Conservatório.
É mais um sinal do materialismo que governa o mundo, a cuja influência esta cidade de artistas, que toda ela é, pela sua posição, um quadro de beleza rara, não pôde resistir.
Senhor Dr. Azeredo Perdigão: perdõe à minha terra esta leviandade. V. Ex.ª é um homem superior e invulgar. Vossa Excelência um dia teve a paciência de me mostrar o seu escritório. Nunca vi coisa, no género, tão perfeita. Tratando-se do escritório de um advogado de renome e farta clientela, o trabalho, que ali deve afluir em manancial permanente, é facilitado pela perfeição do maquinismo. Aquilo não é um escritório; é uma máquina genialmente montada, em que cada peça ocupa o seu lugar e acorre à chamada com a precisão de um cérebro. Por isso, quando Calouste Gulbenkian descobriu V. Ex.ª para montar a máquina da distribuição dos benefícios da sua incomensurável fortuna, ele foi tocado da centelha do génio. Foi genial a escolha e genial tem sido a distribuição da dádiva. Tenho-a acompanhado, dia a dia, essa admirável distribuição. Pela parte que me toca, agradeço a V. Ex.ª o muito que já concedeu à minha linda terra, que outra mais linda não há em Portugal. Terra tão linda não pode produzir gente ingrata. Ela saberá compreender e reconhecer quanto V. Ex.ª é generoso e gentil para com ela; e V. Ex.ª reconhecerá quanto ela lhe está agradecida.
(in Mensagem de 15 de julho de 1961)
António Augusto de Miranda

Sem comentários: