Recordando, junho de 1957


D. Deolinda da Conceição — que eu não conheço, porque devia ser menina quando saí de Macau, há já longos 18 anos — lançou no mercado um interessante livro: “Cheong Sam” (“A Cabaia”), que me recorda muito vivamente o que vi e o que senti nessa fantástica terra portuguesa do Extremo Oriente, onde administrei justiça durante alguns anos.
Macau é uma cidade que normalmente tem uma população nunca inferior a 150.000 almas. É, por consequência, a terceira cidade portuguesa, no ponto de vista populacional, pois figura logo abaixo do Porto, que não tem 300.000 habitantes. Chinesa na grande maioria, a população de Macau reflete as grandes qualidades e os defeitos da raça chinesa. Numa cidade europeia, a tal população seriam indispensáveis, para administrar justiça, pelo menos cinco tribunais criminais. Lisboa, com os seus 800 mil habitantes, tem uns dez tribunais criminais, fora a polícia Judiciária; o Porto, com cerca de 200.000 almas, tem, salvo erro, seis; Braga, com 30 mil almas, tem dois tribunais mistos, isto é, cível e criminal! Isto denota o carácter pacífico da população daquela cidade.
São raros os crimes de pena maior e abundam os de pequenos furtos, resultantes do grau de miséria da população, que é a principal característica das cidades chinesas. São às dezenas os casos desta natureza que se julgam no tribunal de Macau. As senhoras transitam pelas ruas, despreocupadas, e de repente sentem um puxão que lhes arrebata a carteira do braço, vendo um chinês a correr. Mas não anda muitos passos, porque logo um polícia lhe deita a mão. O crime foi mesmo praticado nas barbas da polícia, para este ver e prender o assaltante, que assim adquiriu o direito a cama e mesa de graça por alguns dias.
Outra modalidade do crime em Macau é a cedência gratuita ou onerosa dos filhos. D. Deolinda da Conceição foca, no enternecedor conto “Aquela Mulher”, esta chaga social chinesa, pondo na boca da protagonista estas palavras, falando dos filhos:
“Não, eles não morreram, vivem e comem regularmente. Dei-os a quem lhes podia saciar a fome e protege-los das inclemências da vida. Agora dormem em camas e sentam-se à mesa a comer a sua tigela de arroz quentinho. Não morreram; apenas deixaram de ser meus filhos, pois nunca mais poderei tornar a vê-los. Foi uma condição que me impuseram aqueles senhores ricos e sem filhos…”
Perante isto, julgar-se-á que o chinês é um povo insensível. Refiro-me à sensibilidade moral, a única que interessa aqui. No entanto, êste povo é de uma sensibilidade extrema. Quem dera que a tivessem igual os europeus, onde a cada passo deparamos com casos de uma insensibilidade que confrange. É vulgar, entre nós, os filhos abandonarem os pais velhos e pobres, que lançam mão da caridade pública para não morrerem de fome, enquanto os filhos se refastelam na abundância. Isto nunca se vê entre os chineses, que têm pelos pais o culto do carinho e da ternura. O chinês nunca abandona o pai e a mãe, a quem rodeia de todos os cuidados até à morte.
Povo de uma delicadeza de maneiras que encantam, essa delicadeza faz parte do seu ser, como a delicadeza do corpo, de pés e mãos de uma finura aristocrática, movendo-se em movimentos de uma leveza que impressiona e cativa. Quando presenceio o desprezo, já não digo das crianças, mas dos próprios adultos, pela vida de certos passarinhos que merecem toda a nossa gratidão pelo bem na destruição das pragas que infestam as culturas, lembro-me sempre do gesto, vulgar entre os chineses, de irem para a rua, de gaiola nas mãos, passear os passarinhos que estão encarcerados. Isto define a fina sensibilidade daquele povo, dotado de qualidades extraordinárias de trabalho como eu nunca vi outro; dotado de uma frugalidade capaz de se bastar com uma malga de arroz em 24 horas de trabalho intenso; económico e parcimonioso, aproveitando tudo o que encontra abandonado, de que possa, algum dia, tirar o mínimo proveito possível.
Povo admirável, cujas grandes qualidades o delicioso livro de D. Deolinda da Conceição me fez recordar com verdadeiro prazer espiritual.
(in Mensagem de 15 de junho de 1957)
António Augusto de Miranda

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