Recordando, junho de 1961


Angola
Esta é de todas as parcelas portuguesas espalhadas pelo Ultramar, aquela que mais profundamente cala no coração dos portugueses. Por isso é a que mais faz sofrer quando uma dor a alanceia, como as dores dos filhos fazem sofrer os corações dos pais. É que Angola está ensopada do sangue e do suor de muitos portugueses que, há quatrocentos anos, ali têm deixado a vida ou o melhor dela, e, de todas as províncias ultramarinas, é a que maior contingente de europeus conta. Ainda há dias o nosso bom prior Padre José Pereira, dizia, satisfeito na medida em que esta satisfação deve ser compreendida, que as novenas à Nossa Senhora, do mês de Maio, nunca tinham sido tão concorridas de fiéis como este ano, não tendo sido poucos os rostos que, ao serem elevadas preces pelos ausentes em terras angolanas, se patenteavam orvalhados de lágrimas.
A nossa terra tem um elevado número de filhos naquela província, poucas famílias havendo em Alquerubim que não tenham ali um seu representante: pai, marido, filho, irmão, primo… Isto justifica a devoção com que os fiéis acorreram às novenas do mês de Maio e a que levou os milhares de fiéis, no mesmo mês, ao Santuário de Fátima. Oxalá as preces dos portugueses sejam atendidas, nesta hora cruciante da vida nacional, em que está em perigo o Ultramar Português, cobiçada presa de vorazes e fortes mandíbulas.
Angola de hoje não é a que eu conheci, pela primeira vez, em 1923. Por sinal, não foi dos mais agradáveis, o primeiro contacto que tive com esta terra portuguesa de África. Eu vinha transferido de Moçambique, província que já marcava um certo nível de bem estar e conforto, decerto em resultado do contacto fácil e frequente da gente de Moçambique com a da União Sul-Africana, vizinha de paredes meias, vivendo uma vida mais desafogada em virtude das incomensuráveis riquezas do seu subsólo. Entrei em Angola pelo Lobito, uma pobre restinga em que tudo tinha carácter de provisório.
Ainda me lembro de que tivemos por companheira de viagem, até ao nosso desembarque no Lobito, uma família embarcada no Chinde, onde nós também estivemos, vindos de Tete, hospedados em um pequeno hotel, em que nada faltava para os hóspedes se sentirem bem, apesar de estar instalado num edifício de madeira, como eram quáse todos os edifícios do Chinde naquele tempo. O aspecto do Lobito, com umas palmeiras a lembrarem as intermináveis plantações da Baixa Zambézia, de que o Chinde é uma parcela, fez arrancar à esposa do chefe daquela família, quando alguem a convidou para sair em terra para um passeio:
— Que horror! Eu não saio de bordo. Farta de ver palmeiras e calcar areia venho eu!
Passados vinte anos, o Lobito era uma das terras mais lindas que conheci no nosso Ultramar. Verdadeiramente encantadora, à beira da sua extraordinária baía — extraordinária pela beleza, pelo tamanho (nem grande nem pequeno), pela sua proximidade das habitações, de onde se pode acompanhar com os olhos e até com a fala os navios passam entrando ou saindo. O Lobito é um dos muitos milagres por nós operados em Angola, província que, toda ela, marcou, nos últimos quarenta anos, pela rapidez do seu crescimento, a posição de um verdadeiro prodígio.
O espaço é pequeno para recordar alguma coisa do muito que tenho na memória, passado em Angola, quer, primeiramente, em Moçâmedes, à beira do deserto do Kalaari, com os seus esquadrões de zebras e antílopes coalhando a linha do horizonte, cidade que praticou este outro milagre do transporte de terras das margens do rio Bero para transformar as areias da cidade em uma formosa avenida povoada de árvores e de flores; quer depois em terras do Bié, aquelas que em Angola mais prenderam a minha afeição, pela excelência do clima, superior à maior parte dos climas do continente, produzindo tudo o que dão os trópicos e as terras temperadas da beira litoral, mas onde as árvores originárias da Europa produzem frutos duas vezes no ano, onde as rosas têm o colorido e as violetas a fragrância das da Europa, e onde, e só ali, saboreei as mais deliciosas mangas (fruta das terras quentes) das mais saborosas que fui encontrar na Índia, e onde os meus filhos se banqueteavam, como em mais parte nenhuma depois o fizeram, com os esplêndidos e gordos morangos que, duas vezes por semana, um indígena ia vender à nossa porta…
Desculpe, meu caro Prior, que se não fecho a troneira, isto nunca mais acaba, e o jornalzinho não é só para mim.
Falar de Angola é uma tentação, sobretudo para quem está velho e lá passou alguns dos mais deliciosos anos da sua vida. Outro dia voltarei ao mesmo assunto, se não aborrecer os leitores.
(in Mensagem de 15 de junho de 1961)
António Augusto de Miranda

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