Na “Soberania do Povo”, do dia 4
do corrente mês, o distinto colaborador que no “CONVERSANDO” se acoberta, com
tocante modéstia, sob o nome de “Manuel — apenas”, traz-me à memória pessoas e
factos cuja recordação se me fixou indestrutivelmente na memória durante a
infância e a mocidade.
Minha mãe era originária de
Águeda, onde nascera e onde tinha numerosa família, pelo que todos os anos ia
assistir à procissão dos Passos e aproveitava a ocasião para passar uns dias
com a família. Levava-me sempre consigo, percorrendo os dois a pé os nove
quilómetros que separam Alquerubim de Águeda.
O Senhor dos Passos tinha,
naquele tempo (não sei se ainda tem), para a gente de Águeda, o mesmo encanto
místico que a Rainha Santa Isabel para a de Coimbra e a Princesa Santa Joana
para a de Aveiro. Por isso a minha mãe, que saíra de Águeda em menina, nunca
perdeu aquela atracção que todos os anos, quando da procissão dos Passos, a
puxava para a sua terra natal. Eu gostava imenso de ir com ela e de ali passar
aqueles dias, e de tal maneira me afeiçoei a Águeda, onde toda a família me
estimava, que pela vida fora tenho sentido este fraco por aquela terra, a qual,
à parte as razões do coração, eu acho ser uma das mais lindas e atraentes vilas
de Portugal — para toda a gente, menos para mim, que a acho a mais linda e
atraente de todas as que conheço.
Ali assisti, já na adolescência,
aos grandiosos festejos que se realizaram em honra de um ministro — que creio
foi José de Alpoim, e aos dedicados ao benemérito Conde de Águeda. Era então
regente da banda de Águeda, Querubim de Assis, vivo e insinuante figura de
músico que mais tarde, no coro da igreja, quando esteve de visita à vila, ao
ouvir-me executar, no violino, uma difícil sinfonia que obrigava a complicada
dedilhação em todas as posições da mão esquerda, me dirigiu o mais elevado
elogio que eu nunca esperei merecer de uma autoridade no assunto, tanto mais de
apreciar, quanto era espontâneo, por partir de uma pessoa com quem eu não tinha
relações pessoais.
Isto foi no período áureo do meu virtuosismo de violinista. Eu era
estudante de Direito e ia tocar muitas vezes a Águeda. Era rara a Semana Santa
em que não ia tocar com a orquestra que, em parte constituída por músicas da
antiga banda, em parte contratados, fazia as festividades da freguesia.
Todos os anos se realizava a
Semana Santa ali, com todo o rigor e beleza, “com o esplendor e rigor litúrgico
das suas procissões”, na expressão de “Manuel — apenas”. Era a “alma-mater” das
festividades o José Ferreira, oficial de diligências do tribunal judicial, que
tinha mais amor ao papel da solfa do que aos mandados de captura. Era ele quem
convidava os músicos e me incumbia de convidar os que vinham comigo de Coimbra.
Algumas vezes veio tomar parte na orquestra, tocando viola ou violino, Bernardo
da Assunção, mestre reformado da banda de 23 de Infantaria de Coimbra.
Em certo ano, aí por volta de
1914 ou 15, o José Ferreira, na forma do costume, escreveu-me para Coimbra,
pedindo-me que convidasse alguns músicos. “Que viessem, além da minha pessoa,
outro primeiro violino, dois segundos violinos, um rabecão e, quanto a vozes,
um tenor e um baixo”. Era a gema da
orquestra, que, com os sopros da
música da terra, ficava completa para fazer a Semana Santa. Mas a música da
Semana santa era constituída principalmente pelos responsos de David Peres, para Quarta-feira de Trevas, Quinta e
Sexta-feira Santas e as músicas das cerimónias de Sábado de Aleluia e de
Domingo da Ressurreição, com as respectivas missas. Cinco dias cheios, sendo de
noite e de dia na Quinta e Sexta-feira Santas.
Lá veio o grupo, que eu organizei
todos com rapazes da briosa, isto é,
todos estudantes. Desembarcámos na estação de Mogofores (ou de Oliveira do Bairro,
não me recordo bem), aonde o José Ferreira nos mandou um carro. Mal chegámos a
Águeda (era Quarta-feira, primeiro dia de Endoenças),
fomos logo convocados para o ensaio, a fim de passarmos uma vista de olhos
pelas músicas, que eram invariavelmente as mesmas todos os anos, mas alguns dos
rapazes não as conheciam. O ensaio decorreu conforme Deus foi servido. No fim, eu li na cara do José Ferreira que não
estava contente. Um grupo de estudantes, vir fazer uma festa de tal
responsabilidade, era superior às esperanças do José Ferreira, que antevia já
um desastre. Mas eu tentei animá-lo:
— Não tenha medo, Zé Ferreira,
que isto é gente fixe!
As cerimónias de Quarta-feira,
mais curtas que as dos outros dias, decorreram satisfatoriamente.
Mas depois das cerimónias, alta
noite, a malta desandou para a
estúrdia, em vez de ir descansar, e entrou na pensão de madrugada. Era na
pensão do Gabriel, armador de igrejas, na Rua de Cima. Mas à hora marcada, na
Quinta-feira, de manhã, a malta
estava na igreja e começava-se as cerimónias, que também decorreram bem. Não
sei se os rapazes durante o dia, passaram pelo sono, mas parece-me que não. O
certo é que, à noite, estava tudo a postos no coro, e as Endoenças da Quinta-feira decorreram que foi um consolo.
No fim, toca para a estúrdia! Eu
e alguns mais, menos resistentes a estas provas, deitámo-nos relativamente
cedo. Mas dois entre eles o outro primeiro violino, altas horas da noite
apareceram na pensão muito bêbados, muito impertinentes. O primeiro violino,
era um rapaz chamado João Silva, estudante de Direito, grande coração, muito
brincalhão, a quem nessa noite deu para nos expulsar da cama e atirar os
colchões pela escada abaixo. Foi um torvelinho de mil demónios na pensão, onde
mais ninguém pôde dormir nessa noite.
Pois à hora precisa, aí pelas
oito horas, tudo estava no coro, em boa forma, e tudo correu bem, talvez melhor
que nos outros dias, e o mesmo sucedeu à noite, nas cerimónias de Sexta-feira
Santa. Pensais que a malta foi dormir
naquela noite? Isso sim! Mas o principal estava passado, e quando, no Sábado,
depois da missa, falei com o José Ferreira, êste, já aliviado de um grande
peso, diz-me assim:
— Sempre o senhor me pregou um
susto! Quando vi aquela gente no ensaio, eu disse para os meus botões:
“Ai! minha rica Semana Santa, que
te vais por água abaixo!”
— Como vê, disse-lhe eu, quando
os convidei sabia bem com quem podia contar. Isto é gente fixe, Zé Ferreira.
Este pôs-me a mão no ombro, e
diz-me, muito satisfeito:
— Sim senhor! Quase lhe posso
garantir que foi a melhor Semana Santa que se tem feito em Águeda.
(in Mensagem de 15 de maio de 1957)
António Augusto de Miranda
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