Recordando, maio de 1961


Ainda os artistas do reino animal
Eu não disse, no último escrito, que o rouxinol, habitual inquilino da combreira ali do lado, estava para arrebentar? Ele (ele, ou outro no lugar dele, dêste encadeamento de rouxinóis que, de geração em geração, vêm habitando a combreira há muitas dezenas de anos) é das criaturas mais pontuais que Deus colocou no mundo, dando aos homens, os mais indisciplinados seres da criação, um exemplo que bem lhes aproveitaria se fosse seguido. Mas, a natureza está permanentemente a oferecer aos homens os mais belos exemplos de harmonia, de beleza e de organização, que os homens selvàticamente desprezam, criando, com as suas inovações, a barafunda que se vê, a qual os torna os mais infelizes seres da criação.
O rouxinol, o melro, o canário, com o seu lindo canto; o pintassilgo, o tentilhão, a carriça, com a arte de construção dos seus ninhos; todos os seres do reino animal oferecem aos homens os mais belos e edificantes exemplos de habilidade, amor familiar, fidelidade conjugal, que nunca neles faltam e que entre os homens tantas vezes falecem, apesar de ser o homem o rei da criação, realeza com que enche a boca mas que não apregoa com o exemplo.
Eu escrevo para a gente simples, pouco ou nada culta da minha terra, a que melhor me compreende, porque conhece a arte com que um tentilhão constrói um ninho, no esgalho de uma oliveira musgosa, tão disfarçado que não é fácil distingui-lo; que conhece a ciência arquitectónica com que um pintassilgo segura o ninho num ramo delgado de  lamegueira, dançando ao vento num prodígio e equilíbrio que deslumbraria um trapezista e causa a maior arrelia do rapazio que não o pode atingir por via da fragilidade do ramo: que conhece o ninho da carriça, oculto no revestimento verdejante e rasteiro de um valado, tão escondido, tão disfarçado que muito dificilmente se pode distinguir a entrada em um buraquinho por onde entra e sai o pássaro seu inquilino, que é pouco maior que um colibri; que conhece à maravilha esse cantor dos pomares, o melro de bico cor de lacre sobressaindo na negrura lusidia da plumagem do seu corpo nervoso e arisco, que nos delicia com assobios melodiosos nas tardes mornas de Primavera; que não conhece menos as canções variadas com que o rouxinol, esse extraordinário artista da selva, nos delicia nas noites luarentas de Maio florido.
Escrevo para ela, a gente simples e boa da minha terra, que não perde as suas qualidades com a presença de algum joio que consegue cair na leiva da sementeira, e que, por compreender o que escrevo aqui, gosta de me ler. Pois se os pintassilgos, os tentilhões, as andorinhas, as alvéloas, toda a passarada que habita os campos são os seus companheiros de todos os momentos. Pois se eles lhe dão a melhor música que se produz debaixo do céu, e sem gastar um centavo de entrada.
Eu então, que amo a música como um apaixonado, delicio-me com estes cantares que se produzem à minha volta, e com tal enlevo, que chego a convencer-me de que os pássaros também sentem a música que produzem. Aqui perto de mim está, na sua gaiola dependurada à janela junto da qual escrevo, um canário que me foi oferecido pelo sr. João Maria Marques, pessoa que se dedicou a Alquerubim e à sua gente como de cá fosse. Passarinho incomparável. Cantando como é raro encontrar noutro, parece que se compraz em cantar na minha presença. Se aqui chego e não lhe ligo importância, ele não sossega enquanto lhe não falo, quer saltitando de poleiro em poleiro, num movimento desusado, quer gorjeando meios trinados, até que eu lhe dirija a palavra. Então é vê-lo e ouvi-lo desferir os melhores números do seu inesgotável reportório.
Às vezes quer-me parecer que entre este canário, o melro do pomar do meu cunhado Vicente de Almeida, aqui também ao lado da minha casa, e o rouxinol da combreira, se estabelece um desafio, que umas vezes suponho ser rivalidade, outras um verdadeiro concerto. De qualquer das formas, trata-se de três artistas do reino animal, dos mais distintos com que Deus nos brindou.
É pena que não cantem no inverno. Ajudar-nos-iam a suportar a soturnidade daqueles dias frios e das noites intermináveis daquela estação, da qual até os rouxinois fogem, procurando, logo que a temperatura começa a declinar, terras mais próprias para a conservação da vida.
(in Mensagem de 15 de maio de 1961)
António Augusto de Miranda

Sem comentários: