Aveiro inaugurou há dias o busto
de um seu filho ilustre, o Dr. Jaime de Magalhães Lima, escritor de muito
merecimento. Ao ler o que, a seu respeito e a propósito, se disse e se escreveu
por essa ocasião, veio-me à memória uma cena que presenciei e que define uma
das facetas da interessante personalidade de Jaime de Magalhães Lima.
Era eu estudante do liceu de
Aveiro e ia no carro de Manuel Maria Amador, que se levantava cedo e cedo ia para
o seu serviço de chefe de conservação das estradas. A noite tinha sido de
temporal desfeito e as águas do rio Vouga inundavam os campos de lés a lés,
ameaçando galgar a estrada em alguns sítios. O vento prometia a continuação da
tormenta e o céu, cor de chumbo, era um campo de corridas onde as nuvens
galopavam do Sul para o Norte, na sua faina tempestuosa, não faltando o
ribombar longínquo do trovão. Numa palavra: o tempo convidava a ficar em casa a
quem pudesse fazê-lo, porque vir para a rua só por grande necessidade.
Pois quem havíamos nós de
encontrar, entre as Azenhas e a ponte de S. João de Loure? O Dr. Jaime de
Magalhães Lima e a filha mais velha, sua companheira inseparável nestas
digressões, tanto do agrado de seu pai.
Manuel Maria Amador, de quem já
falei em um dos primeiros artigos desta secção, não tinha papas na língua:
aquilo que sentia lá por dentro, saía sem cerimónia. Por isso, puxando a rédea,
disse:
— Então o Sr. Dr. anda por aqui a
estas horas e com este tempo?
— E o sr. também não anda? —
ripostou Magalhães Lima, na sua voz doce.
— Ora! Ora! Sr. Doutor! Não está
má a comparação! Eu saí de casa sabe Deus com que vontade. Mas os deveres do
ofício a isto me obrigam. Ao passo que o Sr. Doutor…
— Está enganado, Sr. Amador. Cada
um procura satisfazer os seus gostos. Para o Sr., é um prazer praticar o seu
dever: levanta-se cedo para vir fazer o giro na sua circunscrição, demais hoje,
após uma noite de tempestade, que deve ter causado muitos estragos nas
estradas. O Sr., se tivesse ficado em casa…
— Só por doença…
— É o que eu digo. Se tivesse
ficado em casa, o Sr. havia de passar um dia angustiado, por não poder sair
para ver o estado das estradas e prestar-lhes a sua assistência. Não calcula o
prazer que eu sinto ao presenciar estas manifestações da natureza, que aprecio
tanto nos seus momentos de cólera como na suavidade de um dia calmo cheio de
sol e impregnado dos aromas quer de um jardim, quer da floresta. Adeus, que o
tempo não está para conversas nem o sítio é convidativo.
E lá seguiram os dois, envolvidos
em impermeáveis dos pés à cabeça, enquanto nós reatámos a viagem para Aveiro,
em direção oposta à deles, que cada vez se afastavam mais de Eixo, onde
Magalhães Lima então vivia, entregue ao paradisíaco entretenimento dos últimos
anos da sua vida, em íntimo contacto com a natureza.
(in Mensagem de 15 de março de
1957)
António Augusto de Miranda
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