A leitura da biografia do Padre
Américo fez-me recordar os tempo da minha infância, em que eu me entretinha,
com outros, a fazer festas com procissões, nestas figurando andores com os seus
santos. Era ali, a dois passos de minha casa, no amplo eido do tio Bernardo da
Capela, que nos juntávamos aos domingos, os dias escolhidos para as festas religiosas. Dos filhos do tio
Bernardo, eram o Vicente e o Joaquim — o primeiro ainda vivo, casado no Ameal;
e o segundo, falecido ainda novo. Estranhos à família do tio Bernardo, era o
José Lemos, ambos já falecidos, e eu. Não sei se mais algum. Talvez o João e o
Manuel Dias de Sousa, mais conhecidos pelos Caniçais, que moravam perto e eram
companheiros de escola.
Eu, é claro, com a escola do
António Coelho, era o artífice das imagens dos santos, feitas de barro, que não
faltava, aqui na viela junto ao meu eido. Das imagens e dos andores. O resto
era com os outros: mastros, bandeiras e o mais que era preciso para compor e
alindar o caminho da procissão. Não me lembro de quem fazia a música, mas
decerto éramos todos, fazendo de músicos, de padres e de acompanhadores.
Veio-me isto à flor da memória ao
ler o último número do “Gaiato”. Mas que diferença de destinos, determinados
pela dissemelhança de vocações! O que no Padre Américo era vocação religiosa,
contrariada pela vontade paterna, que sempre se opôs à entrada do filho no
seminário para se ordenar presbítero, como foi sempre seu intenso desejo desde
menino, em mim aquelas brincadeiras eram passatempo infantil, espírito de
imitação próprio de crianças vivendo nas proximidades de igreja e com uma
educação religiosa auferida no ambiente de família. O Padre Américo só aos 42
anos conseguiu, por vocação inata, fazer-se clérigo; eu, metido num seminário
na puberdade, dele saí por falta de vocação para padre.
Os domingos eram os dias que eu
mais apreciava e que esperava com mais ansiedade, por causa das brincadeiras
que só naqueles dias se podiam levar a efeito, por serem divertimentos colectivos. Os dias de semana eram de
trabalho, e os meus companheiros ajudavam os pais naquilo que podiam, depois da
saída da escola. Nas aldeias as crianças começam muito cedo a trabalhar em
serviços que as suas tenras idades comportem, como guardar o gado e apanhar
erva. Eu, que não tinha gado nem lavoura, entretinha-me a fabricar terras no
nosso pequeno quintal, empregando as alfaias que eu mesmo construía,
principalmente depois das lições do António Coelho, de quem já falei numa das
primeiras crónicas.
O eido do tio Bernardo era o
sítio para onde minha mãe me deixava ir sem preocupações, por não ter poço, que
é sempre uma coisa de que os pais se devem acautelar quando têm filhos
pequenos. Com a minha assiduidade naquele eido e na casa, onde eu entrava com
os filhos do tio Bernardo com o mesmo à vontade dos da casa, eu parecia da família.
Assim também me tratava a tia Engrácia e marido, que constituíam um dos casais
mais ligados que tenho conhecido. Ela, dotada de grande nervosismo, muito
mexida, falando ràpidamente; ele, calmo, sossegado, falando brandamente. Nunca
o vi levantar a voz daquele tom monocórdico que era o seu normal. Nunca os vi
questionar, creio que nunca tiveram uma zanga, que nunca ralharam, e se se diz
que casa governada precisa de ser ralhada, eu julgo muito mais acertado que uma
casa seja governada sem ralhos. E ali estava a prova disso. A boa da tia
Engrácia governava muito bem a sua casa de lavoura e cumpria zelosamente a sua
função de mãe de seis filhos. Destes, só existem dois, creio eu. O Vicente é um
deles.
Uma noite, durante uma
escapadela, enquanto os demais ficavam a descamisar o milho, fomos nós os dois
a uma figueira que havia perto do cabanal onde a escapadela se fazia.
Encarrapitámo-nos na árvore, que estava repleta de figos maduros que era um
consolo. Comemos até não podermos mais e creio que nunca na minha vida comi
figos tão saborosos. Uma verdadeira delícia! Tão bons, que no dia seguinte, que
era domingo, antes das andanças da brincadeira, lembrámo-nos de voltar aos
figos. Parece que ainda tínhamos nos lábios o sabor daqueles deliciosos frutos.
Trepámos e pusémo-nos a colher. Nisto, o Vicente clama de lá de onde estava:
— Oh! António? Já viste os figos
por dentro?
— Que têm?
Abri um figo e — que horror! —
estava repleto de bichos, rabiando como micróbios numa cultura de laboratório!
Não sei — eu, que sempre fui de
estômago débil — como não caí da figueira abaixo, combalido com náuseas.
— Estás branco como o papel,
diz-me de lá o companheiro. Não tenhas medo, que isto não faz mal. É por isso
que os figos são saborosos.
Mas, nem ele nem eu comemos mais
um figo e, de então para cá, muitos anos foram precisos para eu voltar a comer
tais frutos.
(in Mensagem de novembro de 1956)
António Augusto de Miranda
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