Recordando, novembro de 1956


A leitura da biografia do Padre Américo fez-me recordar os tempo da minha infância, em que eu me entretinha, com outros, a fazer festas com procissões, nestas figurando andores com os seus santos. Era ali, a dois passos de minha casa, no amplo eido do tio Bernardo da Capela, que nos juntávamos aos domingos, os dias escolhidos para as festas religiosas. Dos filhos do tio Bernardo, eram o Vicente e o Joaquim — o primeiro ainda vivo, casado no Ameal; e o segundo, falecido ainda novo. Estranhos à família do tio Bernardo, era o José Lemos, ambos já falecidos, e eu. Não sei se mais algum. Talvez o João e o Manuel Dias de Sousa, mais conhecidos pelos Caniçais, que moravam perto e eram companheiros de escola.
Eu, é claro, com a escola do António Coelho, era o artífice das imagens dos santos, feitas de barro, que não faltava, aqui na viela junto ao meu eido. Das imagens e dos andores. O resto era com os outros: mastros, bandeiras e o mais que era preciso para compor e alindar o caminho da procissão. Não me lembro de quem fazia a música, mas decerto éramos todos, fazendo de músicos, de padres e de acompanhadores.
Veio-me isto à flor da memória ao ler o último número do “Gaiato”. Mas que diferença de destinos, determinados pela dissemelhança de vocações! O que no Padre Américo era vocação religiosa, contrariada pela vontade paterna, que sempre se opôs à entrada do filho no seminário para se ordenar presbítero, como foi sempre seu intenso desejo desde menino, em mim aquelas brincadeiras eram passatempo infantil, espírito de imitação próprio de crianças vivendo nas proximidades de igreja e com uma educação religiosa auferida no ambiente de família. O Padre Américo só aos 42 anos conseguiu, por vocação inata, fazer-se clérigo; eu, metido num seminário na puberdade, dele saí por falta de vocação para padre.
Os domingos eram os dias que eu mais apreciava e que esperava com mais ansiedade, por causa das brincadeiras que só naqueles dias se podiam levar a efeito, por serem divertimentos colectivos. Os dias de semana eram de trabalho, e os meus companheiros ajudavam os pais naquilo que podiam, depois da saída da escola. Nas aldeias as crianças começam muito cedo a trabalhar em serviços que as suas tenras idades comportem, como guardar o gado e apanhar erva. Eu, que não tinha gado nem lavoura, entretinha-me a fabricar terras no nosso pequeno quintal, empregando as alfaias que eu mesmo construía, principalmente depois das lições do António Coelho, de quem já falei numa das primeiras crónicas.
O eido do tio Bernardo era o sítio para onde minha mãe me deixava ir sem preocupações, por não ter poço, que é sempre uma coisa de que os pais se devem acautelar quando têm filhos pequenos. Com a minha assiduidade naquele eido e na casa, onde eu entrava com os filhos do tio Bernardo com o mesmo à vontade dos da casa, eu parecia da família. Assim também me tratava a tia Engrácia e marido, que constituíam um dos casais mais ligados que tenho conhecido. Ela, dotada de grande nervosismo, muito mexida, falando ràpidamente; ele, calmo, sossegado, falando brandamente. Nunca o vi levantar a voz daquele tom monocórdico que era o seu normal. Nunca os vi questionar, creio que nunca tiveram uma zanga, que nunca ralharam, e se se diz que casa governada precisa de ser ralhada, eu julgo muito mais acertado que uma casa seja governada sem ralhos. E ali estava a prova disso. A boa da tia Engrácia governava muito bem a sua casa de lavoura e cumpria zelosamente a sua função de mãe de seis filhos. Destes, só existem dois, creio eu. O Vicente é um deles.
Uma noite, durante uma escapadela, enquanto os demais ficavam a descamisar o milho, fomos nós os dois a uma figueira que havia perto do cabanal onde a escapadela se fazia. Encarrapitámo-nos na árvore, que estava repleta de figos maduros que era um consolo. Comemos até não podermos mais e creio que nunca na minha vida comi figos tão saborosos. Uma verdadeira delícia! Tão bons, que no dia seguinte, que era domingo, antes das andanças da brincadeira, lembrámo-nos de voltar aos figos. Parece que ainda tínhamos nos lábios o sabor daqueles deliciosos frutos. Trepámos e pusémo-nos a colher. Nisto, o Vicente clama de lá de onde estava:
— Oh! António? Já viste os figos por dentro?
— Que têm?
Abri um figo e — que horror! — estava repleto de bichos, rabiando como micróbios numa cultura de laboratório!
Não sei — eu, que sempre fui de estômago débil — como não caí da figueira abaixo, combalido com náuseas.
— Estás branco como o papel, diz-me de lá o companheiro. Não tenhas medo, que isto não faz mal. É por isso que os figos são saborosos.
Mas, nem ele nem eu comemos mais um figo e, de então para cá, muitos anos foram precisos para eu voltar a comer tais frutos.

(in Mensagem de novembro de 1956)
António Augusto de Miranda

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