Recordando, novembro de 1959

Da cidade do Cabo seguiu o navio para Lourenço Marques, após um dia de demora naquele porto. Naquele tempo, os navios de passageiros gastavam o mínimo de quatro dias do Cabo a Lourenço Marques, e creio que nós levámos cinco. Um navio, quando dava 12 milhas à hora, era de bom andamento. Hoje, os navios de passageiros da carreira da África Oriental dão para cima de 16 milhas, creio que chegam a dar 18.
Lourenço Marques é uma cidade que fica escondida dos olhos de quem passa em frente da sua baía e mesmo de quem demanda o porto. Em primeiro lugar por causa da distância a que fica da entrada da barra: desde aqui até ao cais de atracação, gasta o navio cerca de duas horas. Em segundo lugar, é a posição da cidade, que quase toda se espraia na planura da Polana, e não a deixa ver de perto. Até há poucos anos atrás, atracava-se ao cais e ainda não se via a cidade. Apenas víamos, desde a barra, a silhueta do Hotel da Polana, e, já perto do cais, viam-se as instalações portuárias e muito pouca coisa da cidade baixa. Hoje a baixa fica mais ou menos ligada à alta, destacando-se, das construções da baixa, a mole da Catedral com a sua elegante torre.
A baixa era principalmente constituída pelas ruas primitivas da cidade, de pequena largura, como era o costume da época. Mas uma coisa me feriu a atenção: todas as ruas da cidade estavam asfaltadas, de esplêndido piso. Eu, que ia de uma metrópole que, em matéria de estradas urbanas e interurbanas, era uma miséria, comparando este estado de coisas, perguntava a mim mesmo qual das duas estava mais adiantada: a metrópole ou a colónia?
Outra coisa que me surpreendeu foi a ante-visão dos pioneiros construtores da cidade, abrindo avenidas de uma largura como eu só tinha visto em Lisboa, na parte mais nova da capital. Lourenço Marques, tiradas meia dúzia de ruas que constituem a primitiva baixa, é toda rasgada por avenidas de uma largura e de comprimento que desafiam o futuro.
As artérias que atravessam a cidade de Norte a Sul («Vinte e Quatro de Julho» e «Pinheiro Chagas», por exemplo) têm mais de cinco quilómetros de comprido e bem três dezenas de metros de largo, com duas faixas de rodagem e uma placa ao meio, com três largos passeios a cimento, um de cada lado, e outro ao centro. Outra particularidade que notei foi a profusão de árvores que povoam a cidade. Como aquilo, em África só Durban, a cidade-jardim da União Sul-Africana, capital do Natal.
Vimos a cidade à vol-dóiseau, porque a demora do navio ali, foi curta, como é costume com os navios da Costa Oriental, embora se tratasse de uma viagem extraordinária, como foi aquela viagem do «Moçambique» à província do mesmo nome.
De Lourenço Marques seguimos para a Beira, que foi o termo da nossa viagem por mar.
A Beira, cidade portuguesa?!...
O caso pôs-me logo em dúvida, quando pusemos pé no escaler que nos conduziu a terra, ao ouvir falar inglês em vez do português e ao pedirem-me shillings (dinheiro de prata, inglês) para pagar a travessia.
Como se sabe, a Beira, e uma vasta porção da Província, de que aquela cidade era capital, estiveram durante 50 anos sob o governo total (inclusive a soberania nacional) da Companhia de Moçambique. A Beira e o seu território eram, pelo contrato da Companhia com o Governo Português, considerados território estrangeiro. Mercadoria desembarcada em qualquer ponto do território, fosse qual fosse a proveniência, pagava direitos alfandegários à Companhia.
Com tais poderes majestáticos, gozando de todos os direitos inerentes à sua situação, era de esperar que cumprisse os correlativos e recíprocos deveres para com um território e população cuja produtividade e actividade estava a explorar.
Afinal, o que eu encontrei foi uma pequena povoação fundada em uma língua de areia, em cujas ruas não circulava um carro de qualquer género, a não ser os pequenos vagões de quatro rodas, rolando sobre carris e empurrados por pretos. Eram os únicos veículos que utilizava a população, mas de que eram senhores e possuidores as pessoas que tinham posses para isso. Tinha-se um carro daqueles como hoje se possui um automóvel. Em que se apoiava tanta vaidade como a que mostrava a gente que povoava a cidade da Beira?
A resposta fica para outro número.
 (in Mensagem de 15 de novembro de 1959)
António Augusto de Miranda

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