Recordando, outubro de 1956


À esquerda de quem segue para Albergaria-a-Velha, um pouco adiante do edifício das escolas, dentro do ângulo agudo formado pela estrada de Albergaria e o caminho do cemitério novo, existiu, há algumas dezenas de anos, um edifício incompleto, que se destinava a hospital. Onde digo incompleto, quero dizer que lhe faltava tudo, menos as paredes e a cobertura. Era de certas dimensões e destinava-se aos doentes da freguesia. A morte surpreendeu a formosa e generosa obra do benfeitor que assim destinava uma parte da sua fortuna a consolar as dores alheias, e os seus herdeiros não a perfilharam. Eu sempre conheci o edifício naquele estado, servindo de valha-couto a corujas e ciganos, até que um dia, Delfim Lemos teve a simpática ideia de, por meio de uma subscrição difundida entre os emigrantes alquerubinenses espalhados por África e América, aproveitar alguns compartimentos do edifício, que mandou soalhar e forrar e fechar com portas. Mas ficou sempre às escâncaras a entrada principal, de maneira que a construção ficou sendo sempre o mesmo abrigo de ocasião de quem queria. Como não se conseguiram fundos para acabar e pôr a funcionar as enfermarias segundo o desejo de Delfim Lemos, os rapazes passaram a utilizar os compartimentos nas suas distracções teatrais.
Durante anos, o chamado “hospital” foi o ponto de reunião dos estudantes em férias. Quando queriam passar tempo naquelas diversões. Improvisou-se um palco e puseram-se uns bancos toscos de pinho, compraram-se umas ripas e uns metros de chita para bastidores e um bocado de pano cru, que, com umas pinceladas, ficou servindo de pano de boca, e assim se dotou Alquerubim com uma sala de espectáculos, onde durante muitos anos a população gozou agradáveis noites de arte.
Ninguém se ria com a expressão. Arte tem um significado muito lato. Não é só arte o produto da imaginação de um espírito culto, porque o é também a tosca estátua que o mais atrasado preto da selva africana arranca, a canivete, do tronco de árvore, ou os desenhos murais que os paleontólogos descobrem nas ruínas submersas de há milhares de anos, quando os homens ainda não tinham escrita.
Se na arte se procura a perfeição para transmitir ao observador o máximo da emoção com que o artista criou a sua obra, posso afirmar que naquela casa se gozaram muitas horas de arte, na boa disposição de espírito que procuramos quando vamos ao teatro. Os espectadores riam ou choravam, segundo se representava uma comédia ou um drama, e é esse poder emotivo que fazia chorar e rir que eu considero arte teatral.
Tudo é relativo nesta vida. É claro que um actor de primeiro plano não consegue arrancar a uma plateia de iletrados os aplausos que merece a sua arte. Também os actores do hospital de Alquerubim, naquele tempo, não eram capazes de deliciar um Augusto Rosa ou uma Rosa Damasceno, a não ser às avessas, porque nestes meios rurais sucede que uma cena dramática, quanto mais perfeita, mais provoca o riso da plateia, e muitas vezes eu me tenho rido (à sucapa, evidentemente) quando os outros choram com um dramalhão.
Mas, de uma forma geral, posso afirmar que no hospital se passaram muitas noites agradáveis. Naquele tempo a mocidade dedicava-se mais aos passatempos do espírito, e a mocidade das escolas passava geralmente as férias naquele passatempo.
A hilaridade da sala não provinha sempre do palco, porque nestes meios rurais as plateias também enchem os intervalos e, às vezes, até os momentos de cena. Nunca mais me hei-de esquecer de um incidente que uma noite se deu e que fez interromper a representação.
Estava em cena qualquer peça, cujo título não me ocorre. O silêncio da plateia, porém, estava sendo perturbado por um sussurro de vozes que partia do fundo das bancadas e que, em vez de se extinguir, prometia continuar a em escala crescente. Já algumas cabeças se tinham voltado para trás, a impor silêncio aos perturbadores, que eram dois aldeões que tinham por alcunhas, um o “Burro”, outro o “ Macho”. Como estes continuavam, enlevados na cavaqueira que os fazia completamente alheios ao que se estava a passar na sala, o professor Mendes Leal, levanta-se, muito furioso, volta-se e, revestido de toda a sua autoridade, invectiva sem cerimónia:
— Que esterqueira é essa aí?
Responde-lhe o “Macho”, levantando-se muito respeitosamente:
— Desculpe, senhor professor: o “Macho” e o “Burro” só sabem fazer esterco.
Não sei como as bancadas não caíram com a vibração do estrondo das gargalhadas que explodiram. Foi o melhor da representação.
Houve pessoas que vieram rir cá para fora e algumas foram para casa, dizendo que tinham assistido ao melhor do espectáculo, por isso este já não tinha interesse.
Que recordações? Que delicioso tempo!
Quem vive desse tempo?
Ponho-me a dar balanço aos companheiros desses passatempos, e vejo as fileiras rarefeitas. Serei eu o único sobrevivente?
Caiu o José Miranda Leal, ainda em plena mocidade, bom e esbelto rapaz, cuja presença enchia da alegria os que o rodeavam. Tombou o Cosme Pereira lemos, que uma noite fez rir a bandeiras despregadas a plateia com os ferros-velhos que tirava do saco, que não tinha fundo.
Ah! Ainda vive, ali ao Senhor dos Aflitos, um aldeão que, na sua modéstia, certa noite se manifestou um actor de raça, com a exibição de um monólogo em que ele aparecia vestido de frade, a sorver pitadas de rapé, a que chamava o “masalipatão” ou coisa semelhante. É o Alberto dos Santos, mais conhecido por Alberto da Canastreira, que está velho como eu, mas que, apesar de mais novo, entrou no cerne, à compita comigo.
Meu caro Alberto; se quer jogar a longevidade comigo, eu não lhe desejo a morte, mas pode ir adiante, que eu não tenho pressa.

(in Mensagem de 15 de outubro de 1956)
António Augusto de Miranda

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