À esquerda de quem segue para
Albergaria-a-Velha, um pouco adiante do edifício das escolas, dentro do ângulo
agudo formado pela estrada de Albergaria e o caminho do cemitério novo,
existiu, há algumas dezenas de anos, um edifício incompleto, que se destinava a
hospital. Onde digo incompleto, quero
dizer que lhe faltava tudo, menos as paredes e a cobertura. Era de certas
dimensões e destinava-se aos doentes da freguesia. A morte surpreendeu a
formosa e generosa obra do benfeitor que assim destinava uma parte da sua
fortuna a consolar as dores alheias, e os seus herdeiros não a perfilharam. Eu
sempre conheci o edifício naquele estado, servindo de valha-couto a corujas e
ciganos, até que um dia, Delfim Lemos teve a simpática ideia de, por meio de
uma subscrição difundida entre os emigrantes alquerubinenses espalhados por
África e América, aproveitar alguns compartimentos do edifício, que mandou
soalhar e forrar e fechar com portas. Mas ficou sempre às escâncaras a entrada
principal, de maneira que a construção ficou sendo sempre o mesmo abrigo de
ocasião de quem queria. Como não se conseguiram fundos para acabar e pôr a funcionar
as enfermarias segundo o desejo de Delfim Lemos, os rapazes passaram a utilizar
os compartimentos nas suas distracções teatrais.
Durante anos, o chamado
“hospital” foi o ponto de reunião dos estudantes em férias. Quando queriam
passar tempo naquelas diversões. Improvisou-se um palco e puseram-se uns bancos
toscos de pinho, compraram-se umas ripas e uns metros de chita para bastidores
e um bocado de pano cru, que, com umas pinceladas, ficou servindo de pano de
boca, e assim se dotou Alquerubim com uma sala de espectáculos, onde durante
muitos anos a população gozou agradáveis noites de arte.
Ninguém se ria com a expressão. Arte tem um significado muito lato. Não
é só arte o produto da imaginação de um espírito culto, porque o é também a
tosca estátua que o mais atrasado preto da selva africana arranca, a canivete,
do tronco de árvore, ou os desenhos murais que os paleontólogos descobrem nas
ruínas submersas de há milhares de anos, quando os homens ainda não tinham
escrita.
Se na arte se procura a perfeição
para transmitir ao observador o máximo da emoção com que o artista criou a sua
obra, posso afirmar que naquela casa se gozaram muitas horas de arte, na boa
disposição de espírito que procuramos quando vamos ao teatro. Os espectadores
riam ou choravam, segundo se representava uma comédia ou um drama, e é esse
poder emotivo que fazia chorar e rir que eu considero arte teatral.
Tudo é relativo nesta vida. É
claro que um actor de primeiro plano não consegue arrancar a uma plateia de
iletrados os aplausos que merece a sua arte. Também os actores do hospital de
Alquerubim, naquele tempo, não eram capazes de deliciar um Augusto Rosa ou uma
Rosa Damasceno, a não ser às avessas, porque nestes meios rurais sucede que uma
cena dramática, quanto mais perfeita, mais provoca o riso da plateia, e muitas
vezes eu me tenho rido (à sucapa, evidentemente) quando os outros choram com um
dramalhão.
Mas, de uma forma geral, posso
afirmar que no hospital se passaram muitas noites agradáveis. Naquele tempo a
mocidade dedicava-se mais aos passatempos do espírito, e a mocidade das escolas
passava geralmente as férias naquele passatempo.
A hilaridade da sala não provinha
sempre do palco, porque nestes meios rurais as plateias também enchem os
intervalos e, às vezes, até os momentos de cena. Nunca mais me hei-de esquecer
de um incidente que uma noite se deu e que fez interromper a representação.
Estava em cena qualquer peça,
cujo título não me ocorre. O silêncio da plateia, porém, estava sendo
perturbado por um sussurro de vozes que partia do fundo das bancadas e que, em
vez de se extinguir, prometia continuar a em escala crescente. Já algumas
cabeças se tinham voltado para trás, a impor silêncio aos perturbadores, que
eram dois aldeões que tinham por alcunhas, um o “Burro”, outro o “ Macho”. Como
estes continuavam, enlevados na cavaqueira que os fazia completamente alheios
ao que se estava a passar na sala, o professor Mendes Leal, levanta-se, muito
furioso, volta-se e, revestido de toda a sua autoridade, invectiva sem
cerimónia:
— Que esterqueira é essa aí?
Responde-lhe o “Macho”,
levantando-se muito respeitosamente:
— Desculpe, senhor professor: o
“Macho” e o “Burro” só sabem fazer esterco.
Não sei como as bancadas não
caíram com a vibração do estrondo das gargalhadas que explodiram. Foi o melhor
da representação.
Houve pessoas que vieram rir cá
para fora e algumas foram para casa, dizendo que tinham assistido ao melhor do
espectáculo, por isso este já não tinha interesse.
Que recordações? Que delicioso
tempo!
Quem vive desse tempo?
Ponho-me a dar balanço aos
companheiros desses passatempos, e vejo as fileiras rarefeitas. Serei eu o
único sobrevivente?
Caiu o José Miranda Leal, ainda
em plena mocidade, bom e esbelto rapaz, cuja presença enchia da alegria os que
o rodeavam. Tombou o Cosme Pereira lemos, que uma noite fez rir a bandeiras
despregadas a plateia com os ferros-velhos que tirava do saco, que não tinha
fundo.
Ah! Ainda vive, ali ao Senhor dos
Aflitos, um aldeão que, na sua modéstia, certa noite se manifestou um actor de
raça, com a exibição de um monólogo em que ele aparecia vestido de frade, a
sorver pitadas de rapé, a que chamava o “masalipatão” ou coisa semelhante. É o
Alberto dos Santos, mais conhecido por Alberto da Canastreira, que está velho
como eu, mas que, apesar de mais novo, entrou no cerne, à compita comigo.
Meu caro Alberto; se quer jogar a
longevidade comigo, eu não lhe desejo a morte, mas pode ir adiante, que eu não
tenho pressa.
(in Mensagem de 15 de outubro de 1956)
António Augusto de Miranda
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