Sem subtítulo
SIM, isto hoje vai sem subtítulo
que é, as mais das vezes, aquilo que mais me custa a encontrar. Se não se
tratasse de uma frase cediça, eu chamar-lhe-ia Recordar é viver. No entanto, não há coisa mais certa. Em 15 de
Janeiro de 1956 saiu, neste jornalzinho, o meu primeiro «Recordando»; e de então para cá, sem uma falta, ele tem saído, a
bem ou a mal, com dificuldade ou sem ela, todos os meses, num recordar
incessante como nunca previ. Vai fazer seis anos daqui por três meses, num
afirmar constante que, na verdade, recordar é viver. Ora, pois, graças a Deus,
e que êle me dê mais seis anos para viver recordações e aos meus leitores para
me acompanharem neste recordar, que é viver. Voltemos ao Bié.
Quando, em princípios de 1926 (já
lá vão trinta e cinco anos, meu Deus!, e parece-me que foi ontem), eu fui tomar
posse do cargo de juiz da comarca do Bié, com sede na Vila Silva Porto, a
povoação pouco mais era do que a antiga embala de Belmonte, escolhida pelo
sertanejo Silva Porto para sua residência. Embala é uma sanzala (libata ou
povoação de pretos), onde vive o soba. Silva Porto (António Francisco Ferreira
da Silva Porto) estabelecera-se ali, pondo à sua fazenda o nome de Belmonte,
nome que mais tarde foi substituído pelo de Silva Porto, em honra do pioneiro,
designação que conserva, com a diferença de ter sido elevada à categoria de
cidade. Mas isto foi mais tarde. No meu tempo era uma interessante vila, privada
de todo o conforto: hospedarias muito primitivas, como eram geralmente as do
planalto, inclusive Nova Lisboa, que estava nos primórdios da sua existência;
água de um chafariz que abastecia toda a vila ou dos poços dos quintais;
iluminação pública não havia nem electricidade que fornecesse luz para as
habitações. Mas como era povoação de criação recente, as ruas eram alinhadas a
régua e compasso, largas e bem arborizadas, bem macadamizadas e tudo isto dava
à vila um simpático tom de povoação moderna. De simples vila sede de distrito,
foi, já depois da minha saída em 1929, elevada à categoria de cidade sede de
província. Sem uma igreja ou capela onde se pudesse celebrar missa, foi elevada
à dignidade de cabeça de diocese episcopal. A instrução, que no meu tempo não
passava da primária, é actualmente ministrada em escola secundária (colégio –
liceu ou coisa semelhante); a água é levada aos domicílios por uma rede de
canalização e a iluminação eléctrica abastece as ruas e as moradias de luz a
jorros.
Quantas e quais são as terras que
na metrópole tiveram uma ascensão tão rápida e marcada?
E quem diz Silva Porto diz Nova
Lisboa, diz Sá da Bandeira, diz Lobito… Tudo sofreu uma transformação rápida
nos últimos 30 anos.
De Silva Porto recebi há tempo
umas fotografias que me foram enviadas pela minha prima Sr.ª D. Cacilda de
Miranda Melo, professora oficial naquela cidade, hoje aposentada, as quais me
deixaram surpreendidos pela transformação que sofreu a povoação, que eu, por
mim, não veria naquelas fotografias qualquer traço ou sombra que recordasse a
antiga vilasinha sertaneja que me ficou gravada na memória e no coração. Pois,
se numa delas até uma piscina se apresenta, cheia de vida, rodeada de mesas e
cadeiras, onde a população se junta, durante as deliciosas tardes quentes do
Bié, à sombra dos guarda-sois iguais aos que vemos nas esplanadas e nas
piscinas de Espinho, Figueira e outras terras de veraneio. Onde está aquele
edifício carcomido pela infiltração das chuvas, onde funcionava o tribunal da
comarca e dentro do qual eu em marés de tempestade (que no Bié são de respeito)
me sentia pouco à vontade, com receio de que ele desabasse sobre nós? Ao lado
ficava a Câmara, da qual era presidente António da Fonseca Santos, homem de
fina educação e cultura, que fazia parte de uma numerosa irmandade que estava
espalhada pelas terras do planalto, e secretário António Gil, rapaz que se fez gente naquele meio, a centenas de
quilómetros do litoral, rapaz de valor, que ali se fez advogado provisionário e
ali realizou economias que, com a pensão de aposentação, lhe permitiram vir
fixar-se com a família em Lisboa, onde o encontrei e com quem tagarelei
fartamente sobre recordações daquelas terras. Tempos depois, voltando ele a
Angola, viajava ele com um filho de um dos irmãos de António da Fonseca Santos,
num avião das carreiras internas da província, despenhou-se a nave quando se
dirigia para Nova Lisboa, morrendo carbonizados todos os ocupantes.
Pois o tribunal, a câmara, o
Banco Ultramarino e não sei que mais, estão hoje instalados em edifícios
aparatosos como convem às respectivas funções.
Não sei se serão vivas algumas
das pessoas do meu tempo de juiz do Bié. (Bié é a designação da comarca que tem
a sede em Silva Porto). No guia «Hoteis e Pensões de Portugal» vêm ainda
mencionados, em referência a Silva Porto, o Hotel Girão e o Hotel Pimenta,
ambos do meu tempo. Ambos os proprietários, o Girão e o Pimenta, eram novos,
por isso ainda podem ser vivos, mas também podem ter morrido e os
estabelecimentos continuarem com as mesmas designações. A minha prima D.
Cacilda a tanto não chegou nas suas informações e muito além do que eu esperava
foi ela, porque nada pedi à sua gentileza.
Em uma das primeiras crónicas em
que falo do Bié, há dois ou três anos, eu já falei desta terra, a propósito de
um posto receptor de T.S.F. que levei para Silva Porto em 1927.
E em uma das últimas eu menciono
as ricas mangas e incomparáveis laranjas que o seu terreno cria, as lindas
rosas que eu cultivei no jardim em frente da minha casa, as perfumadas violetas
que bordavam os seus canteiros e de uma forma geral todas as lindas flores que
na Europa se criam e que se dão maravilhosamente no clima do Bié — clima tão
ameno, tão igual, como em metade do continente se não encontra. Tão saudável,
que — segundo é ali voz corrente e ponto de fé — naquele clima curam-se
tuberculoses incipientes, sem mais terapêutica que a excelência do ar
maravilhoso que ali se respira.
(in Mensagem de 15 de outubro de
1961)
António Augusto de Miranda
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