Esta região compreendida na faixa
que, tendo por limite de Leste as faldas do Caramulo e de Oeste o Oceano
Atlântico, se estende desde Ílhavo até Espinho, é um verdadeiro alfobre de
músicos. Recordemos a banda da Fábrica da Vista Alegre, considerada, quando eu
era rapaz, uma das melhores bandas do país. Outra, que ombreava com ela. Era a
de S. Tiago de Riba Ul, concelho de Oliveira de Azeméis. Posso mesmo afirmar
que, naquele tempo, esta era a banda que mais agradava aos meus ouvidos
sedentos de boa música. Em Aveiro havia, como ainda há, duas filarmónicas que
muito se guerreavam, as quais, por muito se guerrearem, atingiram um grau
elevado de perfeição. Naquela cidade havia ainda a charanga do Asilo, que
suponho ainda existe, a charanga do regimento de Infantaria 24. E já não é
pouco, para uma terra tão pequena naquele tempo.
E muitas outras filarmónicas
existiam, espalhadas por essas freguesias do distrito. Aqui ao pé da porta,
sempre conheci a de S. João de Loure, que ainda existe, em cuja orquestra
muitas vezes toquei violino, nas festividades religiosas, quando era seu
regente João Marques de Lemos, vulgarmente conhecido por João Bernardo, de quem
adiante falarei.
Alquerubim, terra onde também
corre o filão da música, também teve a sua filarmónica, que acabou mais ou
menos quando eu nasci. Parece que o ‘ultimo componente dela foi Joaquim da
Silva Melo, mais conhecido por Joaquim da Maria Luísa, que faleceu com a bonita
idade de cerca de 90 anos, há um ano ou dois.
Teve pouca duração, esta música.
As causas foram as mesmas que sempre fazem dar em pantanas todas as tentativas
ou realizações de carácter cultural que tem havido nesta terra: em primeiro
lugar, a emigração, que aqui se faz em elevada percentagem, abrindo numerosas
raleiras entre a nossa mocidade masculina. Ultimamente até famílias inteiras
nos tem levado. Em segundo lugar, vem o feitio independente da nossa gente, que
não gosta de se submeter e integrar naquele regime que bem se define pela
expressão: “todos por um e um por todos”. Ninguém quer receber ordens, e para
uma boa organização colectiva, indispensável é que todos se submetam às
determinações de quem dirige. Sem ensaios não pode haver uma boa filarmónica ou
uma boa tuna.
Também houve uma tuna, aqui. Foi
fundada e parece ter tido o seu melhor período, quando eu era estudante do
seminário. Como eu já arranhava no violino, nas férias não podia fugir à
tentação de colaborar com a tuna.
Reuníamos para os ensaios numa
casa que existia à Santa Marta, no lugar do Ameal. Além da minha pessoa, que, aliás,
era um elemento extra, parece-me que, dos seus componentes, apenas existe Júlio
Castro.
Era seu regente, no meu tempo, o
João Bernardo, de quem acima falei, mestre da filarmónica de S. João de Loure.
Era um excelente homem, este João Bernardo. Mas muito medroso.
Havia ali, no Cerrado, num
cruzamento de caminhos da Lapa de Fontes para a Santa Marta, uma pequena mata —
pequena mas muito fechada. Talvez por isso se chamasse Cerrado ao sítio. Como
era muito fechada, era sombria; e nas noites sem luar tinha fama de ali
aparecerem lobisomens e até o próprio diabo. Por isso, o João Bernardo, que,
como eu digo acima, era muito medroso, como os ensaios eram de noite e ele
tinha de vir de perto das Azenhas, onde morava — três quilómetros bem puxados
—, fazia-se acompanhar de uma filha, criança de poucos anos, que passava todo o
ensaio a dormir sentada.
Numa noite, que estava ventosa, o
João Bernardo, ao aproximar-se do local por volta da meia noite, que é a hora
em que estas coisas do outro mundo aparecem, viu passar na sua frente,
atravessando do Pereiro para o Cerrado, o diabo em pessoa em forma de porco.
O que valeu ao bom do João
Bernardo, segundo ele depois contou, foi saber o Credo em latim, como se canta
na missa. Começou a entoá-lo, com a sua voz sonora, como se estivesse a reger a
filarmónica da sua música:
— “Credo in unum Deum Patrem
omnipotentem, factorem caeli et terrae visibilium omnium, et invisibilium…”
E o diabo, que tinha parado na
encruzilhada, voltado para ele, no jeito de arremeter, deu meia volta e, ao som
de um grande ronco, embrenhou-se nas sombras do arvoredo. O João Bernardo, mais
a filha, continuou o seu caminho, tremendo como varas vezes, só deixando de
entoar o Credo quando chegou próximo das primeiras casas da Lapa.
(in Mensagem de 15 de setembro de
1957)
António Augusto de Miranda
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