Sempre, desde que me conheço,
tive repulsão, um misto de repugnância e medo, pelos bêbedos, pelos mascarados
e pelos loucos.
O álcool exerce tal atração sobre
os homens, que se podem contar a dedo os que atravessam a vida incólumes
daquele tóxico. No entanto, com a embriaguez, o homem, rei da Criação, desce
abaixo de todos os animais, porque não há animal irracional algum que se
embriague. O homem é o único que desce a essa baixeza. Por isso eu tenho pelo
bêbedo desprezo e nojo.
Havia naquele tempo, nas
proximidades do cruzeiro de Fontes, o qual ocupava o lugar onde está hoje o
chafariz de duas bicas, duas tabernas onde, aos domingos, costumavam estalar
ruidosas desordens que eram a vergonha da terra. Homens e mulheres, à mistura,
estas umas vezes em defesa dos seus homens, outras elas mesmo provocando o
motim, armavam chinfrins infernais que parecia que se acabava o mundo. Quando
calhava, entrava em função o varapau, que costumava ser um cacete de nodoso
marmeleiro, e era um partir de cabeças que não sei que santo protegia aquela
gente, porque nunca, que eu saiba, de ali saiu ferimento que levasse alguém ao
cemitério. É bem certo que “ao menino e ao borracho põe sempre Deus a mão por
baixo”.
Não havia arraial, nocturno ou
diurno, em que se não desse uma violenta cena de pancadaria, que às vezes
varria o arraial de lés a lés, deixando, por vezes, estatelados no chão, dois
ou três corpos em coma.
Felizmente, hoje não há desses
espectáculos. Os homens não usam cacete e as raras questões que surgem são
liquidadas a tabefe, sem acompanhamento de algazarra. No entanto, não se bebe
menos vinho, e mantêm-se abertas as tabernas aos domingos, contra os bons
princípios da educação das massas.
O mascarado inspira-me repulsa e
medo, um medo instintivo de qualquer coisa de desagradável que possa vir não se
sabe de onde.
Era eu pequeno, teria muito dez
anos, Salvador Correia, há poucos anos falecido, que fora soldado em África, na
campanha contra o Gungunhana, ainda quente com o entusiasmo dos recentes
combates, organizou um simulacro de combate entre brancos e pretos, pelo
Carnaval. Deu-se o recontro das forças no adro, aonde acorreu muita gente para
presenciar o combate. As espingardas caçadeiras estavam, evidentemente,
carregadas com pólvora seca, mas uma, ou porque fosse descarregada
à-queima-roupa, ou fosse por outra razão, feriu um dos soldados da coluna
negra, que era o José Martins dos Santos Barreto, se a memória não me atraiçoa.
Estabeleceu-se enorme borborinho na multidão, com naturais exageros sobre a
gravidade do ferimento, que, afinal, não teve importância.
Este incidente impressionou-me
por toda a vida contra as máscaras, as quais, se até então me metiam medo,
passaram a produzir em mim repulsão.
Quanto aos doidos, merece
referência o Luís de Paus — o “Caramba” — e o seu contemporâneo Manuel Belbute.
Aquele era um doido assomadiço, a quem a garotada fazia exasperar atirando-lhe
pedras, ao que ele ripostava também com pedras e, por vezes, arremessando o
próprio pau, que trazia sempre. Nesses momentos, ele tornava-se colérico e,
então, ah! pernas! para que vos quero!
O Luís de Paus aparecia poucas
vezes cá por baixo, ao contrário do Belbute, que passava o tempo no Ameal e em
Fontes, sem paradeiro certo para dormir e comer. Gostava de prestar serviços,
ganhando muitas vezes o que comia rachando lenha.
Era um doido manso, que às vezes
tinha ditos dignos de pessoa ajuizada. Uma vez dirigiu-se a uma das casas que
frequentava, para matar a fome. Não entrou, porque, ainda de largo viu a casa
cheia de gente a banquetear-se em lauta e ruidosa comesaina na qual, à moda da
região quando se festeja casamento, se consumiam fartas iguarias, regadas por
torrentes de vinho. O Belbute, horrorizado com aquele esbanjamento de comida,
retrocedeu revoltado, vociferando:
— Pouca vergonha! É um
desgoverno!
Doido simpático e inofensivo,
nunca me meteu grande medo, e a garotada não o arreliava muito; apenas lhe
perguntava (e nisto imitava os adultos):
— Manuel, vai meter o pé no
mei’alqueire!
Eu nunca soube a origem deste
estribilho. O Belbute apenas respondia meia dúzia de inconveniências de pequena
importância, que faziam rir o mais sisudo.
Aceitava quantos chapéus lhe
davam; e porque tinha pelo chapéu um culto infantil, ia-os colocando uns sobre
os outros na cabeça. Cheguei a vê-lo com quatro ou cinco chapéus.
Em certa ocasião, ao ouvir dizer
que determinado indivíduo, desprovido de qualidades de iniciativa, embarcara
para o Brasil, teve essa expressão, digna de um espírito lúcido:
— Ora! Ora! Que vai ele lá fazer?
Quem não é cá, não é lá.
E saiu certa a profecia, porque o
emigrante nunca deu coisa que visse.
(in Mensagem de 15 de setembro de 1956)
António Augusto de Miranda
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