Recordando, julho de 1957


António Taipeiro era um dos meus maiores amigos de Alquerubim, amizade esta que datava de quando eu era tamanino. E eu, é claro, retribuía-lhe na mesma moeda. Ninguém é mais sensível aos mimos recebidos do que as crianças, cujos corações são terreno impróprio para a germinação do ódio e da ingratidão.
Se fosse possível atribuir valor material ao carácter das pessoas, o do Taipeiro seria pago a diamantes.
Era proprietário de carros de aluguer, que ele próprio guiava; e na sua longa vida do Cocheiro captou muitos segredos, foi detentor de muitas intimidades, que a sua honradez guardou até à morte, descendo com ele à sepultura. Os cocheiros, como os motoristas de hoje, são as pessoas que mais segredos colhem.se lhes falta a seriedade, que infinidade de desgostos e aborrecimentos, que tempestades domésticas não podem causar com as suas inconfidências! Ora a seriedade e a honestidade era o que abundava no velho António Taipeiro.
— Isto aqui é um poço! — ouvi-lhe dizer muitas vezes, batendo no peito, definindo assim a segurança com que guardava os segredos que captou.
Nunca soube o que é mandriar e assim foi que, auxiliado pela esposa, que por sinal era uma santa, criou os três filhos que Deus lhe deu, num ambiente de sã cristandade. Ainda são vivos dois, que o mais velho — Isauro — morreu novo em África, para onde o destino o empurrou cedo, mas onde o não deixou aproveitar as suas brilhantes qualidades de inteligência. Os vivos são: Lúcia, que vive só e doente na casa que os pais lhe deixaram, e o Viriato, que uma vez embarcou para Angola, já lá vão talvez mais de 30 anos, e nunca mais cá voltou.
Este último é o que mais se aproxima da minha idade, por isso aquele de quem mais recordações tenho, embora não fôssemos companheiros na escola primária.
Um dia, o pai incumbiu-o de conduzir o carro que nos levou a Águeda: minha mãe, minha irmã e eu.
Era um carro de duas rodas, puxado por uma cavalgadura, que, ao chegarmos à rampa da ponte da Fontinha, em vez de seguir para a ponte, guinou para a direita, enfiando pela rampa descendente que leva ao rio. Um pavor! Minha mãe e minha irmã assustaram-se, eu começo a ficar da cor das ervas quando avisto o rio, lá em baixo mas bem próximo, e o amigo Viriato, muito aflito, de pé, a puxar as rédeas com quanta força tinha, lá conseguiu dominar a alimária, que parou. Às arrecuas, ele lá logrou trazê-la para a estrada e, com falas mansas e bons modos, tentou que ele enveredasse para a ponte. Mas, qual carapuça! A burra teimou: o que queria era ir para o rio. Lá passar a ponte, não era com ela. E nesta teima do Viriato com o animal, êste, não podendo vencer a sua, pespega connosco para cima do combro, onde o carro ficou meio voltado e nós os três espalhados pelos arbustos.
Mas o Viriato não se atrapalhou. Foi num ápice que desatrelou o animal; e, como o carro era pequeno, nós os quatro o tirámos e o arrastámos para o caminho, onde novamente lhe foi atrelada a alimária.
Nova tentativa do Viriato para que o animal passasse a ponte, estando é claro, nós fora do carro, à espera do que aquilo daria. O Viriato a puxar pela arreata, o animal a puxar para trás, ameaçando novamente tombar a carripana sôbre a ribanceira, e não víamos meio de sair desta situação e continuar a viagem, quando o Viriato teve uma ideia genial:
— Oh! António! Sobe para a boleia!
Fiquei estarrecido.
— Para a boleia?! E se o carro se tomba outra vez?
— Não tomba, eu te garanto. Sobe para a boleia e puxa o rabo à égua. Verás que ela anda, porque já o vi fazer a outro e o animal pôs-se a andar para a frente.
Bem! A ideias heroicas devem corresponder actos heroicos. Enchi-me de coragem e subi. Mal toquei na cauda do animal, êste deu um galão e desfechou como uma flecha pela rampa acima, direito à ponte, quase derrubando o Viriato.
— Eu não to disse? — cascalhou êste, agarrado à rédea, quase dependurado ao pescoço do animal, para lhe dominar a fúria.
Só consegui dominá-lo em cima da ponte, que transpôs já sossegadamente, indo minha mãe e minha irmã tomar os seus lugares na margem oposta, na Fontinha.
Então o Viriato explicou, enquanto subíamos a ladeira de Segadães, a caminho de Águeda. Tinha-se construído a ponte pouco tempo antes, e o animal havia andado a fazer transporte de areia do rio para o aterro da rampa, para o que teve de descer e subir dezenas de vezes o caminho que conduz à margem do rio. Como até àquela data outro ali não conhecia, a alimária, quando chegou ao princípio da rampa, pensou — se pensar é próprio de uma égua — que devia ir onde tantas vezes o mandaram.
E digam lá se os burros não têm memória.
O bom do Viriato! O que nós rimos todo o caminho!
Parece que o estou a ver, mais tarde, agarrado ao violão (creio que era violão que ele tocava), na Tuna de Alquerubim, de que também fiz parte quando vinha a férias.
Mas isto é assunto para outra crónica.
(in Mensagem de 15 de julho de 1957)
António Augusto de Miranda

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