António Taipeiro era um dos meus
maiores amigos de Alquerubim, amizade esta que datava de quando eu era
tamanino. E eu, é claro, retribuía-lhe na mesma moeda. Ninguém é mais sensível
aos mimos recebidos do que as crianças, cujos corações são terreno impróprio
para a germinação do ódio e da ingratidão.
Se fosse possível atribuir valor
material ao carácter das pessoas, o do Taipeiro seria pago a diamantes.
Era proprietário de carros de
aluguer, que ele próprio guiava; e na sua longa vida do Cocheiro captou muitos
segredos, foi detentor de muitas intimidades, que a sua honradez guardou até à
morte, descendo com ele à sepultura. Os cocheiros, como os motoristas de hoje,
são as pessoas que mais segredos colhem.se lhes falta a seriedade, que
infinidade de desgostos e aborrecimentos, que tempestades domésticas não podem
causar com as suas inconfidências! Ora a seriedade e a honestidade era o que
abundava no velho António Taipeiro.
— Isto aqui é um poço! — ouvi-lhe
dizer muitas vezes, batendo no peito, definindo assim a segurança com que
guardava os segredos que captou.
Nunca soube o que é mandriar e
assim foi que, auxiliado pela esposa, que por sinal era uma santa, criou os
três filhos que Deus lhe deu, num ambiente de sã cristandade. Ainda são vivos
dois, que o mais velho — Isauro — morreu novo em África, para onde o destino o
empurrou cedo, mas onde o não deixou aproveitar as suas brilhantes qualidades
de inteligência. Os vivos são: Lúcia, que vive só e doente na casa que os pais
lhe deixaram, e o Viriato, que uma vez embarcou para Angola, já lá vão talvez
mais de 30 anos, e nunca mais cá voltou.
Este último é o que mais se
aproxima da minha idade, por isso aquele de quem mais recordações tenho, embora
não fôssemos companheiros na escola primária.
Um dia, o pai incumbiu-o de
conduzir o carro que nos levou a Águeda: minha mãe, minha irmã e eu.
Era um carro de duas rodas,
puxado por uma cavalgadura, que, ao chegarmos à rampa da ponte da Fontinha, em
vez de seguir para a ponte, guinou para a direita, enfiando pela rampa
descendente que leva ao rio. Um pavor! Minha mãe e minha irmã assustaram-se, eu
começo a ficar da cor das ervas quando avisto o rio, lá em baixo mas bem
próximo, e o amigo Viriato, muito aflito, de pé, a puxar as rédeas com quanta
força tinha, lá conseguiu dominar a alimária, que parou. Às arrecuas, ele lá
logrou trazê-la para a estrada e, com falas mansas e bons modos, tentou que ele
enveredasse para a ponte. Mas, qual carapuça! A burra teimou: o que queria era
ir para o rio. Lá passar a ponte, não era com ela. E nesta teima do Viriato com
o animal, êste, não podendo vencer a sua, pespega connosco para cima do combro,
onde o carro ficou meio voltado e nós os três espalhados pelos arbustos.
Mas o Viriato não se atrapalhou.
Foi num ápice que desatrelou o animal; e, como o carro era pequeno, nós os
quatro o tirámos e o arrastámos para o caminho, onde novamente lhe foi atrelada
a alimária.
Nova tentativa do Viriato para
que o animal passasse a ponte, estando é claro, nós fora do carro, à espera do
que aquilo daria. O Viriato a puxar pela arreata, o animal a puxar para trás,
ameaçando novamente tombar a carripana sôbre a ribanceira, e não víamos meio de
sair desta situação e continuar a viagem, quando o Viriato teve uma ideia
genial:
— Oh! António! Sobe para a
boleia!
Fiquei estarrecido.
— Para a boleia?! E se o carro se
tomba outra vez?
— Não tomba, eu te garanto. Sobe
para a boleia e puxa o rabo à égua. Verás que ela anda, porque já o vi fazer a
outro e o animal pôs-se a andar para a frente.
Bem! A ideias heroicas devem
corresponder actos heroicos. Enchi-me de coragem e subi. Mal toquei na cauda do
animal, êste deu um galão e desfechou como uma flecha pela rampa acima, direito
à ponte, quase derrubando o Viriato.
— Eu não to disse? — cascalhou
êste, agarrado à rédea, quase dependurado ao pescoço do animal, para lhe
dominar a fúria.
Só consegui dominá-lo em cima da
ponte, que transpôs já sossegadamente, indo minha mãe e minha irmã tomar os
seus lugares na margem oposta, na Fontinha.
Então o Viriato explicou,
enquanto subíamos a ladeira de Segadães, a caminho de Águeda. Tinha-se
construído a ponte pouco tempo antes, e o animal havia andado a fazer
transporte de areia do rio para o aterro da rampa, para o que teve de descer e
subir dezenas de vezes o caminho que conduz à margem do rio. Como até àquela
data outro ali não conhecia, a alimária, quando chegou ao princípio da rampa,
pensou — se pensar é próprio de uma égua — que devia ir onde tantas vezes o
mandaram.
E digam lá se os burros não têm
memória.
O bom do Viriato! O que nós rimos
todo o caminho!
Parece que o estou a ver, mais
tarde, agarrado ao violão (creio que era violão que ele tocava), na Tuna de
Alquerubim, de que também fiz parte quando vinha a férias.
Mas isto é assunto para outra
crónica.
(in Mensagem de 15 de julho de
1957)
António Augusto de Miranda
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