Recordando, dezembro de 1960


Mais um aniversário
Completam-se hoje cinco anos que saiu o primeiro número de «Mensagem», que entra, assim, no seu sexto ano de existência.
Antigamente — quando eu era menino o tempo parecia-me que não andava. No entanto, eu também fazia anos, como toda a gente. Ainda me lembro de quando fiz sete anos, porque nesse dia fui visitado pela minha avó das Póvoas, a Senhora Joaninha das Póvoas, como era conhecida. Naquele tempo o Dom era pouco usado: só com pessoas de elevada categoria. Por isso a minha avó das Póvoas era apenas conhecida por a Senhora Joaninha das Póvoas. Hoje seria Senhora D. Joaninha. Há mais hipocrisia hoje, porque isto de Dom e de Excelência, estão mais baratos que serrobeco, que era pano muito usado, por ser duro. Hoje só se usam casimiras e quejandas, que são mais finas, mas muito menos duradouras. Fui naquele dia visitado por aquela avó e ainda me lembro bem de que ela me levou uma prenda, e qual prenda foi. Não pensem os meus netos que era algum brinquedo, como tantos outros que eles têm recebido desde que fazem anos e que têm espatifado. Então, não havia brinquedos à farta, como hoje.
A maior parte dos brinquedos que eu tive para me entreter, fui eu que os fiz, alguns deles com a ajuda proficiente do António Coelho, artista nato de quem falei em um dos primeiros «Recordando». Bom trabalho isso me custou, e a atestá-lo estão as diversas cicatrizes que me ficaram nas mãos.
Como eu vinha dizendo, o tempo naquela época da vida, parecia-me que não andava, embora eu, em cada ano, marcasse mais um.
Depois, quando comecei a sentir o peso de responsabilidades sobre mim, o tempo já se sentia andar e com o dobrar dos anos, passou a correr. Hoje, ele não anda nem corre: ele desaparece! Não admira: da marcha a pé, o homem passou a andar de carro de burros; depois, de automóvel; seguidamente, de avião com hélice; depois, de avião a jacto; e parece que as coisas se encaminham para andarmos num raio de luz. Ora façam lá ideia o que isso será, se tal se realizar!
Mas ninguém se ria, porque ainda não há um século armou-se uma grande bernarda entre os lentes de uma escola — superior, é claro — por causa da luz do gás de iluminação. Este gás, descoberto no fim do século XVII, só nos princípios do século XIX se começou a generalizar. Foi nessa altura que um dos lentes levou aos seus colegas a novidade, na qual nem todos acreditaram sem ver — como S. Tomé.
— Luz sem torcida? — disse um deles; não pode ser!
É sempre assim; e uma criança, nascida hoje, nada estranha das maravilhas que vê, as quais acha que são fenómenos normais, e se alguma estranhesa elas lhes podem causar, é que tais maravilhas não sejam conhecidas desde o princípio do mundo.
Voltando ao princípio: completam-se hoje cinco anos que saiu o primeiro número deste simpático jornalzinho. Isto diz muito. O que é de lamentar é muitos dos seus assinantes não saberem corresponder ao esforço que representa a vida do jornal durante este lapso de tempo. Creio mesmo que alguns supoem que ele não custa dinheiro. Há gente para tudo. Até há quem não acredite em Deus! Pois o jornal custa dinheiro, mesmo muito dinheiro, se atendermos à minguada receita que a sua reduzida tiragem produz. E se isto pudesse classificar-se de milagre, eu diria que é um milagre a vida deste jornal. De resto, pode ser que o seja. Deus manifesta-se por tantas formas, que pode muito bem suceder que Deus esteja a protegê-lo, traçando o seu destino.
Já reparastes, leitores, em que o jornal nasceu no mêsmo em que nasceu Jesus? É interessante a coincidência, que não parece simples acaso. Também não me parece que o bom Padre Miguel, quando pensou em fundá-lo, preparasse as coisas de forma a o seu primeiro número sair no mês de Dezembro, o mês do nascimento do Salvador.
Mas agora, leitores, não vos apegueis a isto para deixardes em atraso o pagamento das assinaturas. Não vades invocar a possibilidade de o jornal viver do ar, isto é, por milagre, não necessitando, por isso, de que lhes pagueis as assinaturas. O nosso bom Padre José Pereira vê-se e deseja-se para equilibrar o barco. Bom timoneiro, oxalá que a ciência náutica o não abandone, e que também não abandone a vossa vontade de pagar as assinaturas. Nisso é que está o milagre, e não será pequeno, se se realizar.
Mês de Dezembro, mês do Natal, não podia eu faltar ao dever de saudar, na parte infinitesimal que tenho no número dos leitores, êsses poucos leitores que se interessam pelas rabugices de um velho, que nem sempre pode suportar com paciência as irreverências e as sem-cerimónias dos novos. É que este peso morto dos anos que carregam sobre mim, às vezes provoca-me hiatos na memória, levando-me a esquecer que também já fui como vós os novos. Daí, estas verrinas que de vez em quando lanço ao papel e que tão irritantes são por vezes. Mas, consola-me esta verdade: é que tudo quanto aqui se diz é inspirado na mais honesta e construtiva das intenções. Gritar contra o estado da Ponte da Fontinha, quando ela ameaça ruir, é defender as vidas ameaçadas daqueles que, autorizados por uma tabuleta falaz, se lançam à travessia afoitos; barafustar contra o lastimoso estado de uma estrada que desengonça os veículos e destroça os rins dos passageiros, para mais quando há dinheiro para o conserto, merece perdão, muito embora as palavras sejam escritas com aparo molhado em sumo de laranja azeda…
Ora pois! Esta arenga já vai longa e o nosso Prior diz que o jornal não é só para mim. Eu próprio sempre tive uma certa antipatia pelos maçadores, por isso fujo o mais possível à pecha de o ser também. Bastam-me, para inimigos, aqueles que embirram comigo por dizer a Verdade e as verdades…
… Neste primeiro número do 6.º ano de publicação de «Mensagem», reato aqui o fio com que comecei e que interrompi com divagações que lembram as cerejas a sair de uma corbelha.
Parece que foi ontem que o jornal nasceu, e são passados já cinco anos! Eu, pela minha parte, nunca pensei ter ainda de dar, durante cinco anos, a minha menos que modesta colaboração para êle. Graças a Deus! Se não fossem os atrasados, dir-se-ia que o jornal tem navegado em um Mar de Rosas. Já assim se não pode dizer do mundo em que vivemos. Muitas coisas se deram neste período de tempo — umas boas, outras más, as más mais que as boas… Deus se amercie dos homens responsáveis, para que reine sobre a Terra a Paz de Cristo, para que, os que viverem daqui a um ano, possam viver com menos sobressaltos.
Gloria in excelsis Deo, et in terra pax hominibus bonae voluntatis.
(in Mensagem de 15 de dezembro de 1960)
António Augusto de Miranda

2 comentários:

josé miranda disse...

Hoje aprendi mais duas palavras: serrobeco e corbelha. Fui ao Priberam.
Curioso é: Textos com a qualidade destes que o avô escreveu se tornam tão atuais e assim o serão sempre.

Fiquei sem saber qual a prenda que o avô recebeu. Imagino uma camisola
Tenho muito orgulho em ser seu neto e muito boas recordações.
As melhores são da leitura dos textos sobre a vida estudantil em Coimbra (in illo tempore) que nos faziam rir mas quem mais ria ere ele próprio, depois de jantar e já na caminha para dormir.

Recordando disse...

Tal e qual eu, também fiquei sem saber qual foi a prenda. Fiquei mesmo curiosa. Até fui reler todas as crónicas seguintes (e que ainda irão ser publicadas), na tentativa de satisfazer a minha curiosidade.
Também tenho excelentes recordações do avô, não só das férias que com ele passávamos (as idas a Aveiro onde ficávamos na Livraria, seguindo-se o lanche no café onde aparecia, invariavelmente, o engraxador, o cauteleiro e o chinês das gravatas).
Recordo também, com muito carinho, o tempo em que viveu connosco na Vila da Feira e de, sempre que passava no colégio para ir até à livraria Amga ou ao café, esperar pelo intervalo, mandar chamar-me ao portão e me perguntar: "Vou lá abaixo, o que queres que te traga?". Geralmente trazia-me um livro (ainda tenho a colecção Arca de Noé, III Classe, da Livraria Bertrand, com histórias de Aquilino Ribeiro que me deu e que guardo religiosamente).
Recordo ainda, e até parece que estou a ouvir, as gargalhadas no quarto dos meus irmãos, quando depois de se deitarem, o avô lhes ia ler histórias.