Mais um aniversário
Completam-se hoje cinco anos que
saiu o primeiro número de «Mensagem», que entra, assim, no seu sexto ano de
existência.
Antigamente — quando eu era
menino o tempo parecia-me que não andava. No entanto, eu também fazia anos,
como toda a gente. Ainda me lembro de quando fiz sete anos, porque nesse dia
fui visitado pela minha avó das Póvoas, a Senhora Joaninha das Póvoas, como era
conhecida. Naquele tempo o Dom era
pouco usado: só com pessoas de elevada categoria. Por isso a minha avó das
Póvoas era apenas conhecida por a Senhora Joaninha das Póvoas. Hoje seria
Senhora D. Joaninha. Há mais hipocrisia hoje, porque isto de Dom e de Excelência, estão mais baratos que serrobeco, que era pano muito
usado, por ser duro. Hoje só se usam casimiras e quejandas, que são mais finas,
mas muito menos duradouras. Fui naquele dia visitado por aquela avó e ainda me
lembro bem de que ela me levou uma prenda, e qual prenda foi. Não pensem os
meus netos que era algum brinquedo, como tantos outros que eles têm recebido
desde que fazem anos e que têm espatifado. Então, não havia brinquedos à farta,
como hoje.
A maior parte dos brinquedos que
eu tive para me entreter, fui eu que os fiz, alguns deles com a ajuda
proficiente do António Coelho, artista nato de quem falei em um dos primeiros
«Recordando». Bom trabalho isso me custou, e a atestá-lo estão as diversas
cicatrizes que me ficaram nas mãos.
Como eu vinha dizendo, o tempo
naquela época da vida, parecia-me que não andava, embora eu, em cada ano,
marcasse mais um.
Depois, quando comecei a sentir o
peso de responsabilidades sobre mim, o tempo já se sentia andar e com o dobrar
dos anos, passou a correr. Hoje, ele não anda nem corre: ele desaparece! Não
admira: da marcha a pé, o homem passou a andar de carro de burros; depois, de
automóvel; seguidamente, de avião com hélice; depois, de avião a jacto; e
parece que as coisas se encaminham para andarmos num raio de luz. Ora façam lá
ideia o que isso será, se tal se realizar!
Mas ninguém se ria, porque ainda
não há um século armou-se uma grande bernarda entre os lentes de uma escola —
superior, é claro — por causa da luz do gás de iluminação. Este gás, descoberto
no fim do século XVII, só nos princípios do século XIX se começou a
generalizar. Foi nessa altura que um dos lentes levou aos seus colegas a
novidade, na qual nem todos acreditaram sem ver — como S. Tomé.
— Luz sem torcida? — disse um
deles; não pode ser!
É sempre assim; e uma criança,
nascida hoje, nada estranha das maravilhas que vê, as quais acha que são
fenómenos normais, e se alguma estranhesa elas lhes podem causar, é que tais
maravilhas não sejam conhecidas desde o princípio do mundo.
Voltando ao princípio:
completam-se hoje cinco anos que saiu o primeiro número deste simpático
jornalzinho. Isto diz muito. O que é de lamentar é muitos dos seus assinantes
não saberem corresponder ao esforço que representa a vida do jornal durante
este lapso de tempo. Creio mesmo que alguns supoem que ele não custa dinheiro.
Há gente para tudo. Até há quem não acredite em Deus! Pois o jornal custa
dinheiro, mesmo muito dinheiro, se atendermos à minguada receita que a sua
reduzida tiragem produz. E se isto pudesse classificar-se de milagre, eu diria
que é um milagre a vida deste jornal. De resto, pode ser que o seja. Deus
manifesta-se por tantas formas, que pode muito bem suceder que Deus esteja a
protegê-lo, traçando o seu destino.
Já reparastes, leitores, em que o
jornal nasceu no mêsmo em que nasceu Jesus? É interessante a coincidência, que
não parece simples acaso. Também não me parece que o bom Padre Miguel, quando
pensou em fundá-lo, preparasse as coisas de forma a o seu primeiro número sair
no mês de Dezembro, o mês do nascimento do Salvador.
Mas agora, leitores, não vos
apegueis a isto para deixardes em atraso o pagamento das assinaturas. Não vades
invocar a possibilidade de o jornal viver do ar, isto é, por milagre, não
necessitando, por isso, de que lhes pagueis as assinaturas. O nosso bom Padre
José Pereira vê-se e deseja-se para equilibrar o barco. Bom timoneiro, oxalá
que a ciência náutica o não abandone, e que também não abandone a vossa vontade
de pagar as assinaturas. Nisso é que está o milagre, e não será pequeno, se se
realizar.
Mês de Dezembro, mês do Natal,
não podia eu faltar ao dever de saudar, na parte infinitesimal que tenho no
número dos leitores, êsses poucos leitores que se interessam pelas rabugices de
um velho, que nem sempre pode suportar com paciência as irreverências e as
sem-cerimónias dos novos. É que este peso morto dos anos que carregam sobre
mim, às vezes provoca-me hiatos na memória, levando-me a esquecer que também já
fui como vós os novos. Daí, estas verrinas que de vez em quando lanço ao papel
e que tão irritantes são por vezes. Mas, consola-me esta verdade: é que tudo
quanto aqui se diz é inspirado na mais honesta e construtiva das intenções.
Gritar contra o estado da Ponte da Fontinha, quando ela ameaça ruir, é defender
as vidas ameaçadas daqueles que, autorizados por uma tabuleta falaz, se lançam
à travessia afoitos; barafustar contra o lastimoso estado de uma estrada que
desengonça os veículos e destroça os rins dos passageiros, para mais quando há
dinheiro para o conserto, merece perdão, muito embora as palavras sejam
escritas com aparo molhado em sumo de laranja azeda…
Ora pois! Esta arenga já vai
longa e o nosso Prior diz que o jornal não é só para mim. Eu próprio sempre
tive uma certa antipatia pelos maçadores, por isso fujo o mais possível à pecha
de o ser também. Bastam-me, para inimigos, aqueles que embirram comigo por
dizer a Verdade e as verdades…
… Neste primeiro número do 6.º
ano de publicação de «Mensagem», reato aqui o fio com que comecei e que
interrompi com divagações que lembram as cerejas a sair de uma corbelha.
Parece que foi ontem que o jornal
nasceu, e são passados já cinco anos! Eu, pela minha parte, nunca pensei ter
ainda de dar, durante cinco anos, a minha menos que modesta colaboração para
êle. Graças a Deus! Se não fossem os atrasados, dir-se-ia que o jornal tem
navegado em um Mar de Rosas. Já assim se não pode dizer do mundo em que
vivemos. Muitas coisas se deram neste período de tempo — umas boas, outras más,
as más mais que as boas… Deus se amercie dos homens responsáveis, para que
reine sobre a Terra a Paz de Cristo, para que, os que viverem daqui a um ano,
possam viver com menos sobressaltos.
Gloria in excelsis Deo, et in terra pax hominibus bonae voluntatis.
(in Mensagem de 15 de dezembro de
1960)
António Augusto de Miranda
2 comentários:
Hoje aprendi mais duas palavras: serrobeco e corbelha. Fui ao Priberam.
Curioso é: Textos com a qualidade destes que o avô escreveu se tornam tão atuais e assim o serão sempre.
Fiquei sem saber qual a prenda que o avô recebeu. Imagino uma camisola
Tenho muito orgulho em ser seu neto e muito boas recordações.
As melhores são da leitura dos textos sobre a vida estudantil em Coimbra (in illo tempore) que nos faziam rir mas quem mais ria ere ele próprio, depois de jantar e já na caminha para dormir.
Tal e qual eu, também fiquei sem saber qual foi a prenda. Fiquei mesmo curiosa. Até fui reler todas as crónicas seguintes (e que ainda irão ser publicadas), na tentativa de satisfazer a minha curiosidade.
Também tenho excelentes recordações do avô, não só das férias que com ele passávamos (as idas a Aveiro onde ficávamos na Livraria, seguindo-se o lanche no café onde aparecia, invariavelmente, o engraxador, o cauteleiro e o chinês das gravatas).
Recordo também, com muito carinho, o tempo em que viveu connosco na Vila da Feira e de, sempre que passava no colégio para ir até à livraria Amga ou ao café, esperar pelo intervalo, mandar chamar-me ao portão e me perguntar: "Vou lá abaixo, o que queres que te traga?". Geralmente trazia-me um livro (ainda tenho a colecção Arca de Noé, III Classe, da Livraria Bertrand, com histórias de Aquilino Ribeiro que me deu e que guardo religiosamente).
Recordo ainda, e até parece que estou a ouvir, as gargalhadas no quarto dos meus irmãos, quando depois de se deitarem, o avô lhes ia ler histórias.
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