Recordando, junho de 1958


Isto passou-se por volta do fim de 1921, talvez princípio de 1922.
Organizadas em um grupo de umas 20 ou 30 pessoas, várias famílias tomaram um batelão na Feitoria da Companhia da Zambézia, em Tete, e partiram em excursão, rio abaixo, atravessando-o, a jusante, defronte do edifício onde funcionavam os serviços administrativos do agente da autoridade (hoje, dir-se-ia: chefe de Posto), que era o sr. Risques Pereira, de cuja filha, menina de 10 anos, eu fora professor, em Coimbra, cerca de 12 anos antes, no Colégio Mondego, de que era Director e distinto professor Diamantino Dinis Ferreira, natural ali da Oliveirinha.
O amigo Risques Pereira esperava-nos para o almoço. Mas que rico almoço! Foi ali que pela primeira vez saboreei a deliciosa açorda à alentejana, preparada e condimentada por Risques Pereira, com o carinho e a devoção com que se tratam as coisas da nossa terra. Fiquei com tal simpatia por aquele acepipe, que nunca, na minha horta, faltam os coentros, que de vez em quando para matar saudades, vão aromatizar uma açorda de alho e ovo cozido com que engano o paladar.
E que bom caril! Na Índia não se faz melhor. Chegámos à hora do almoço, e êste decorreu na maior alegria, até que o amigo Risques Pereira, lançando o olhar experimentado para o céu zambeziano, useiro e veseiro em surpresas meteorológicas, exclamou:
— Não tendes tempo a perder. Aquela nuvem negra traz temporal, e como tendes de subir o rio, arriscai-vos a ser apanhados no caminho pela monomocaia. (Chamam-se assim os tornados ou tufões que assolam frequentemente a costa de Moçambique).
Na verdade, uma nuvem negra como carvão, desenhava-se para o lado do mar, que dista de Tete, em linha recta, mais de 400 quilómetros, e tinha jeito de avançar pela terra dentro.
Tratámos logo dos aprestos para o regresso. Já todos conhecíamos os efeitos destas surpresas, e para vencer a largura do rio, que ali é de cerca de um quilómetro, contra corrente, num batelão movido a braços pelos pretos, eram precisas bem duas a três horas.
Nunca, em minha vida, teve tanta utilidade a prevenção de me munir de um guarda-chuva como daquela vez. É verdade que aquele útil objecto saiu de casa comigo com a designação de guarda-sol, pois estava um solde rachar pedras, como é o de Tete, que chega a estrelar um ovo nas horas de mais calor, e eu, que entre muitos de feitos, não tenho, graças a Deus, o da imprevidência, peguei nele, lembrando-me de que tinha um filho de dois anos que precisava de defender dos ardores do sol, e nunca esquecido do rifão que diz: «pão e gabão nunca pesaram na mão». Quem diz gabão diz guarda-sol ou guarda-chuva. Daquela vez ele guardou as duas coisas: na partida guardou o sol, e no regresso guardou a chuva.
Ou tentou guardar. Porque aquilo não era chuva: era uma catarata que começou a desabar sobre nós a meio da viagem e a meio do rio, que era o poder de Deus. As senhoras já choravam e rezavam, porque a certa altura o céu ficou forrado de negro e a escuridão foi quase completa. Mal se desenhavam os areais, e receávamos que o batelão naufragasse sobre algum banco de areia. Eu, com a criança de baixo do guarda-chuva e a mulher muito aconchegada a nós, encharcados, porque o guarda-chuva era como um crivo, fazia como os restantes homens: animava, conforme podia, as senhoras e as crianças, sempre na esperança de ver surgir a margem direita do rio, aonde pudéssemos aportar. Ela surgiu, ao cabo de cruciante luta contra o vento, a impetuosidade da corrente, avolumada pela catarata desencadeada, e a negrura da noite, que viera antes de tempo.
Mas as margens do rio eram varridas pelas torrentes que se formaram com a abundância desconforme das águas da chuva e foi uma enorme dificuldade encostar o batelão a sítio seguro para se poder pôr pé em terra.
Fomos aportar ao sítio indicado pelas vozes dos criados que das casas dos seus amos acorreram às margens do rio, prevendo o que se passara e vindo trazer-nos socorro, tudo feito por iniciativa deles, pretos, a quem tanta gente calunia, desconhecedora dos dotes de ternura que o coração dos negros também alimenta. Lá estavam os machileiros com as machilas dos seus senhores, onde foram transportadas as crianças e as senhoras. Nós, os homens, palmilhámos o chão completamente encharcado até casa, numa distância de mais de um quilómetro.
Pois, apesar de tudo isto, molhado até aos ossos, ninguém se constipou, ninguém sofreu o mais leve resfriado!
Passados dias, por notícias chegadas do Chinde, soubemos que o tornado caíra em cheio sobre esta povoação e afundara várias embarcações a vapor pertencentes à flotilha mercante do Zambeze, as quais, por serem chatas, se voltaram. Morrendo debaixo delas algumas das suas tripulações. Entre os que assim acabaram seus dias, contava-se um conterrâneo nosso, Xisto Pereira Lemos, irmão do falecido Orlando Pereira Lemos, que comandava um desses barcos, pertencentes à Sena Sugar.
(in Mensagem de 15 de junho de 1958)
António Augusto de Miranda

3 comentários:

Mário Pinho de Miranda disse...

A esposa do avô era a nossa avó que morreu alguns, poucos, anos depois, julgo que precisamente em Tete em resultado duma intervenção cirúrgica. E o filho que o avô refere era o meu pai que, tendo nascido em 25 de Agosto de 1919, contaria na altura 2.

Recordando disse...

Olá Mário!
A avó Emília morreu em Lourenço Marques em 1933. Nesta altura os avós ainda só tinham um filho, o teu pai. O meu pai nasceu em Tete em 1922 e, segundo o avô conta numa outra crónica, tiveram uma filha entre o teu pai e o meu que lá morreu. Segundo essa mesma crónica o meu pai, se não tivessem saído de Tete, lá teria morrido também.

João Scwalbach disse...

Viva Leitão Marques,

Que belo texto! Não só porque está bem escrito mas, principalmente, por traduzir uma época onde se expressa também um espírito aberto quanto ao relaccionamento entre os Homens, tantas vezes toldado por uma estúpida e desapropriada superioridade rácica. Gostei muito. Na época meu pai teria 9 ou 10 anos. Como sabes, minha avó paterna, Virgínia, nasceu em Tete, meu pai e 4 dos seus filhos também. O quinto filho, feito em Tete, nasceria na Amadora (Portugal) - meu pai, pela primeira e última vez usou a graciosa. Meu bisavô Anacleto Nunes, pai da minha avó Virgínia era "dono" de Tete. No dia dos seus anos era feriado em Tete e a charanga vinha tocar à porta. Por isso o avô da Zézinha e os Nunes/Schwalbach conheceram-se de certeza. E quem sabe se no batelão não fossem as famílias juntas. Outra coisa que é importante salientar nesse documento é a presença de crianças nestas aventuras. Porque os pais não os largavam, iam aprendendo a vida de uma outra forma. Tentei dar esta ideia no Livro que te enviei.

Um grande abraço e beijos para a Zézinha meus e da Teresa,

João