Recordando, abril de 1958


Já aqui me referi, de uma forma geral, à visita pascal. Ela faz-se no dia de Páscoa e no dia seguinte: o primeiro dia destina-se aos lugares de Fontes, Ameal e Calvães, e o segundo aos do Fial, Beduído e Paus. É uma visita extenuante, pois é preciso calcurriar maus caminhos; como a freguesia é bastante dispersa, ao fim daqueles dois dias o prior e seus colaboradores estão extenuados.
O grupo é constituído pelo prior, que lança a bênção; o regedor, que conduz a cruz; o sacristão, que leva a caldeirinha de água benta; e a pessoa encarregada de recolher as dádivas em dinheiro. Acompanham o grupo os rapazes que generosamente tomam a seu cargo recolher e transportar os ovos oferecidos. A maior parte das ofertas é de ovos, mais ou menos, segundo as posses de cada um. O serviço mais violento é o dos transportadores dos ovos, que são metidos em cestos e carregados aos ombros, para a Residência Paroquial. Enquanto isto se passa entre a Residência e os lugares próximos, a coisa não corre mal. Animados por uns cordiais, que vão tomando aqui e ali, e enquanto as pernas não começam a vergar, tudo corre às mil maravilhas. Mas pela tarde, já com percursos mais distantes e com as libações tomadas, o caso é mais sério. No entanto, não me consta que alguma vez se tivesse inutilizado o conteúdo de algum cesto.
É costume, quando há seminaristas na freguesia, eles acompanharem o prior na visita pascal. Suponho ser isto costume de todas as freguesias. Como eu também fui seminarista, também me coube, duas ou três vezes (foi há tantos anos, que não me recordo das vezes que tomei parte neste séquito). Na minha qualidade de seminarista que é um aspirante a clérigo, demais revestido de batina, romeira e barrete, eu gozava da preferência de ocupar o lugar junto do prior.
Quem conhece os meios rurais sabe que a hospitalidade do lavrador não dispensa a prova do sumo das suas uvas; e quando se trata de uma visita mais cerimoniosa, as honras são feitas com acompanhamento de vinho do Porto. Também sabe que a recusa em, tais casos, tem para o lavrador um significado que melindra a sinceridade da sua hospitalidade a não ser que se trate de caso imperioso em que a saúde perigue.
Ora é costume, na visita pascal, apresentar ao prior e sua comitiva, na maioria das casas, o briol da própria lavra; e, se as posses o permitem, as honras da mesa cabem ao vinho do Porto. É verdade que as bebidas vêm acompanhadas de uns bolos de pastelaria caseira ou doces de arraial, para fazer lastro. Mas que é isto, se o prior não se acautela? Depois de ter percorrido uma dúzia de casas, o caminho parece-lhe mais comprido, as pernas mais curtas e as casas multiplicadas. Por isso, o seminarista presta, neste dia e nesta missão, um alto serviço ao prior, porque este empurra para ele, sempre que pode, a tarefa das libações.
Havia aqui na freguesia, no meu tempo de seminarista, um prior que era engraçadíssimo. Sempre que podia pregar uma partida aos rapazes, não hesitava. Aos rapazes e, em suma, a qualquer pessoa, porque ele tinha piada para todos os paladares. Nunca me esquecerei  de uma vez em que ele, lá no Passal, andando a ver as ameixas Rainha Cláudia, me perguntou, com seu ar zombeteiro:
— Tu gostas de ameixas?
Ora, se gostava! Demais, aquelas estavam mesmo a tentar um santo, com a pele dourada que era um apetite!
— Pois então vem cá amanhã ajudar-me à missa. Que depois vimos ao Passal às ameixas. Elas são mais saborosas de manhã orvalhadas e frescas.
E assim se fez. Consolei-me de comer ameixas Rainha Cláudia, que são deliciosas.
O pior foram as consequências. No dia seguinte não pude comparecer na residência, como era meu costume. Minha mãe até chegou a afligir-se. Mas não era nada de grave. Quando, dois dias depois, compareci diante do prior, este perguntou-me, esfregando o grosso nariz e sorrindo:
— Então ontem estiveste doente? Eh! Eh! Eh!
Pois foi com este prior, que tinha artes de convencer o próprio diabo se este lhe aparecesse, que eu fiz as minhas visitas pascais quando seminarista.
Quando, pela primeira vez, chegámos à Costa de Beduído, a caminho de Paus, eu não me aguentava nas pernas, resultado de fazer ao prior a vontade de o ajudar a fazer as honras do vinho do Porto. Eu não sabia mesmo em que terra estava, e decerto não deitaria a Paus, se o conselho providencial do Vicente Correia de Melo, que transportava um cesto de ovos, não viesse em meu auxílio:
— Toma lá, disse-me ele, entregando-me um ovo. Faz-lhe dois furos e chupa, que isso passa. Se precisares, dou-te outro.
E foram na verdade precisos dois ovos crus para a quebreira me passar.
 (in Mensagem de 15 de abril de 1958)
António Augusto de Miranda

4 comentários:

Mário Pinho de Miranda disse...

Pois nem eu nem o meu irmão Manel fomos seminaristas e também andámos num domingo de Páscoa num dos quatro ou cinco compassos que na altura havia na nossa terra: a Foz do Douro.
E também posso dizer que a coisa era "pesada". Não só nas libações durante as visitas aos domicílios dos paroquianos mas também no almoço oferecido pelo sr. Abade na sua residência a todo o pessoal. E posso dizer-vos que este almoço merecia bem que lhe aplicassem o dito popular: "comeram [e, já agora, beberam] que nem uns abades".
Há fotografias disto quer das visitas quer do almoço.

Recordando disse...

Mário, não fazia ideia que tu e o Manel tinham andado nestas lides! E, já agora, qual destes papeis ("O grupo é constituído pelo prior, que lança a bênção; o regedor, que conduz a cruz; o sacristão, que leva a caldeirinha de água benta; e a pessoa encarregada de recolher as dádivas em dinheiro. Acompanham o grupo os rapazes que generosamente tomam a seu cargo recolher e transportar os ovos oferecidos.")vos estava destinado? Certamente o de carregar com os ovos!
Beijinho.

Mário Pinho de Miranda disse...

Na Foz não havia benesses para o Sr. Abade. De maneira que a maioria de nós só ia pata comer e beber

Maria José Miranda disse...

Muito mais tarde, quando nós os netos vínhamos no domingo de Páscoa visitar o avô a Alquerubim, a casa dele era a última e, como ele era pessoa grada da aldeia, o senhor prior dedicava-lhe um tempo bastante alargado para conversar com ele com os meus pais e com os tios. Havia sempre uma mesa bonita e cuidada: toalha bordada, amêndoas, folar e umas bolachinhas feitas pela minha mãe que eram o meu encanto. O vinho do Porto lá estava, dentro de garrafa de vidro lapidado (julgo que ainda a tenho!).
O prior trazia uns cães com ele que o avô tratava logo de pôr na ordem: Rua que é sala de cães!
Sendo a última casa da visita, havia descarga de foguetes lançados pelo Mindo, os de Pum e os de Estalo. Não sei a que princípio obedecia a sequência nem a quantidade de uns e de outros, mas que o Mindo era um artista ah! disso não tenho dúvida.