Recordando, setembro de 1958


Não sei como hei-de cumprir a promessa feita ao bom e querido Padre Miguel. Já hoje são 5, dia aprazado para a entrega do original, e este está no começo, correndo o risco de não chegar ao fim…
É que uma teimosa, impertinente e maçadora constipação, que já meteu remédios da farmácia e receita de médico, conquistando assim a elevada categoria de gripe, há duas semanas que não me deixa pôr o nariz fora de casa e — o que é pior — me indispõe para todo o trabalho: mental ou físico. Ao longo da minha já longa vida, tenho apanhado muitas constipações e algumas gripes, mas da força desta é que não me lembra de ter tido alguma.
Vingou-se bem de mim, o Mar, de quem eu não me fartava de dizer mal. Banhos de mar? gosto e tomei muitos a bordo, em água morna. Mas na água fria do Mar, na praia, tomei-lhes tal aversão em pequeno, que ainda hoje os detesto. E isto foi só molhar os pés: o que não seria se tivesse imergido o corpo todo!
A primeira vez que travei relações com o Mar tinha eu uns 9 ou 10 anos. Há quantos anos isso lá vai, sabendo-se que eu sou já um Matusalém, embora de via reduzida, pois o da Bíblia morreu com muitos centos de anos.
Apesar de tanto tempo decorrido, ainda me lembro de que o percurso para a Torreira, a praia da moda da gente daqui, desse tempo, se faz de barco, segundo o costume. Havia em Eirol, perto da actual fábrica de serração dos srs. Póvoas, um barqueiro, conhecido pelo Manuel Barqueiro, que, além de barqueiro, também era pescador, e algumas vezes lá fui saborear boas caldeiradas de brasinos, pescados no rio em marés de enchente. Tinha ele um grande barco, no qual transportava para a Torreira, no tempo de banhos, as pessoas que escolhiam aquela praia. Naquele tempo, era costume cada um levar para a praia lenha e mantimentos e tudo o que pudesse fazer arranjo. Calcule-se a imensidade de coisas que cada barcada levava, sabido que eram muitas as pessoas que seguiam em cada leva. Pois foi lá, na praia da Torreira, que travei relações com o Mar, esse Mar de que eu mais tarde tanto ouviria falar, e que tantas vezes vim a percorrer em vários sentidos através de várias partes do mundo.
O médico tinha recomendado que eu tomasse banhos de mar, por causa de umas protuberâncias que me apareceram debaixo dos queixos. Coisas vulgares nas crianças.
Os banhos eram às vezes tomados ainda de noite, por causa da maré, e debaixo de um frio de enregelar. Mas, logo que tomava dois ou três mergulhos, começava a aquecer e, quando regressava à barraca e começava a vestir-me, eu era um braseiro.
………………………………………………………………………………………………
Bem me parecia que não chegava ao fim deste «Recordando». Esta cabeça não dá nada e sente-se mal com o esforço, pelo que peço desculpa ao bom Padre Miguel.
Para o próximo número o acabarei… se Deus quiser.
(in Mensagem de 15 de setembro de 1958)
António Augusto de Miranda

2 comentários:

LUIS PINHO MIRANDA disse...

Acabei de saber onde está a origem do meu pouco apetite por banhos de mar frio...

Recordando disse...

Então já somos dois, Luís.