Recordando, fevereiro de 1961


O Cão
Não me lembro de quem escreveu estas palavras:
«Quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães». Esta expressão, de uma verdade profunda, resultante da convivência do Homem, animal racional, ingrato, e o Cão, animal irracional todo ele gratidão para quem o estima, devia ser esculpida em todas as pedras tumulares levantadas em memória desse nobre animal. Sim: de entre tanta ingratidão humana, surge por vezes um gesto de agradecimento perene ao companheiro que, por bem pouco, dedicou toda a sua existência a servir e a amar o seu dono. Há quem ache ridículo isto: dar sepultura, assinalada por memória adequada, a um cão.
Não defendo o tratamento piegas que certas pessoas, dotadas de psicologia mórbida, concedem ao seu cão ou aos seus cães. Ainda deve haver, em certas regiões do Oriente, nababos que tratam este animal como aquele príncipe indiano que mandava passear os seus oitenta cães em luxuosos e ricos «Cadillacs». Isto é um acto de loucura. Ainda há, decerto, quem meta o seu fraldisqueiro na própria cama de dormir, o que condeno.
Mas o que não posso é condenar quem trata com carinho, com ternura, o seu cão, ternura e carinho que ele merece em retribuição da amizade, da dedicação e dos serviços prestados ao seu dono.
O cão é o animal mais dócil que o homem tem ao seu serviço, o seu amigo mais desinteressado e dedicado, o seu guarda mais fiel e barato, porque trabalha ùnicamente pela comida, a maior parte das vezes má, a más horas e acompanhada de um pontapé.
E o cão tudo suporta, com uma humildade, uma resignação de … — ia a dizer de «santo», mas a tempo me contive de proferir a blasfémia. Ah! Se o cão tivesse alma, que prodigiosa lição de virtudes teologais ele daria a muitos homens que se julgam grandes cristãos!
Contam as crónicas que, em 1935, morreu em Tóquio, capital do império japonês, um cão chamado Hesciko, que toda a gente que o conhecia venerava pelas suas altas qualidades. Quando o seu patrão saía de casa para o comboio, todos os dias, o cão acompanhava-o à estação, e, à tarde, ele ia sempre à estação esperá-lo. Quando o patrão morreu, Hesciko continuou a ir diàriamente à estação esperar o comboio em que ele costumava voltar, e assim continuou a fazer, durante os 11 anos que ainda viveu.
Isto mereceu-lhe ser citado nos livros escolares, como exemplo de fidelidade e amizade, sendo o seu retrato divulgado nos cinemas, e foi-lhe levantada uma estátua de bronze.
Foi-lhe dada sepultura perto da sepultura do seu dono, assim se cimentando para além da morte uma amizade entre o homem e o animal, que ficou servindo de exemplo para a posteridade.
Facto semelhante se deu também entre um operário e o seu cão, creio que na Hungria, durante a última guerra mundial.
Tudo isto me veio à lembrança, quando há dias, reparei para um pobre cão, denunciando boa estirpe, mas magro, de olhar triste, cheio de fome, que percorria a estrada lançando um olhar angustioso a quem passava.
Cão sem dono, o desgraçado viera para aqui, transportado por qualquer camioneta das que transportam as vasilhas do leite, e aqui abandonado à sua triste sorte. Informaram-me que é uso isto: quando se está farto do cão, que pela sua idade já não pode prestar serviços, pede-se a um condutor de uma camioneta que o transporte para longe e o lance em qualquer parte. E ali fica o pobre cão, abandonado e acabando por morrer à míngua de tudo.
O Código Penal está incompleto. Tantos crimes pune, mas falta-lhe um artigo que preveja e puna este crime, que também brada aos céus, porque um pobre cão, que trabalhou uma vida inteira a defender, de graça, a casa e os haveres do seu dono, também merece um pouco de caridade, quando pela sua invalidez já não pode trabalhar.
Esta e outras semelhantes me levam a perfilhar as palavras do filósofo:
«Quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães».
 (in Mensagem de 15 de fevereiro de 1961)
António Augusto de Miranda

5 comentários:

Mário Pinho de Miranda disse...

Antecipando em 60 anos ideias que só no presente têm reflexo legal.

josé miranda disse...

Tal e qual. Grande senhor

josé miranda disse...

Em 1988/89 entrou no escritório da Isabel o Sr. Hernâni, morador na Taipa, para a constituir como advogada para participar criminalmente contra dois rapazes que tinham dado um tiro e morto, voluntariamente, na sua frente e de sua mulher, no quintal que era contíguo ao seu.
Com pouco suporte legal, apenas com a previsão de crime de dano, participou criminalmente. os rapazes foram condenados por esse crime não se recordando a Isabel se com pena suspensa ou multa.
Era a única hipótese de subsumir a conduta dos agentes do crime. Como se o animal fosse uma coisa.
E assim foi

josé miranda disse...

Esqueci-me de contar uma parte
Durante o processo todos os seus colegas da comarca a gozaram por defender um gato.

Maria José Miranda disse...

Um bom coração mas nunca lhe conheci com um fiel amigo ao lado. Nem gostava muito deles dentro de casa. Aos que acompanhavam o padre na Páscoa dizia: rua que é sala de cães!