Quando este jornalzinho sair,
deve estar nesta freguesia, absorvido na sua semana de pregação, Sua Excelência
reverendíssima o sr. Arcebispo de Cízico.
Conhecemo-nos no Seminário dos
Carvalhos, onde, se não fomos condiscípulos, fomos estudantes contemporâneos.
Ele era um espírito vivíssimo, de uma simpatia ultra-cativante, tudo caldeado
com uma brilhante inteligência que fazia dele um aluno distinto; eu… era
músico. Todos no Seminário me conheciam, unicamente por causa da rabeca, para a
qual tinha uma certa jeiteira. O senhor Arcebispo de Cízico — D. Manuel Maria
Ferreira da Silva — gostava muito da música, e daí a sua simpatia pela minha
pessoa e a amizade que nos ligou através dos muitos anos que nos separam do
tempo em que fomos alunos do Seminário dos Carvalhos.
Um dia, eu abandonei o Seminário,
tomando outros destinos; o Ferreira da Silva, mais afortunado e mais
inteligente que eu, continuou. Os seus altos méritos elevaram-no a uma eminente
dignidade na hierarquia da Igreja; eu, fui elevado à minha, no foro civil… por
tarifa, auxiliada por uma incomensurável vontade de acertar no bom desempenho
do meu cargo.
Passaram-se muitos anos, durante
os quais eu acompanhei a escala ascendente de Manuel Ferreira da Silva, desde a
sua ordenação, até que um dia o destino levou-o à Índia, onde, com o título de
Bispo de Gurza, foi auxiliar do sr. Patriarca das Índias, D. Teotónio Vieira de
Castro.
Estando eu em Macau, e sabendo tão perto o velho amigo, pusemo-nos em
contacto espiritual. A carta que me escreveu, em resposta à minha, é o espelho
ainda vivo daquela alma cheia de bondade, aureolada por uma alegria e bela
disposição que caracterizam o seu espírito sempre moço.
Esperava eu ainda ir encontrá-lo
em Goa, quando, por motivo de promoção, eu ali fosse colocado. Mas nem a minha
promoção se fez para Goa, nem, quando mais tarde, fui transferido para ali, já
D. manuel se encontrava lá. Havia regressado à metrópole e aqui o vim
encontrar, em 1948, quando do meu ingresso no quadro metropolitano. Visitei-o
então nos Olivais e foi um consolador esfuziar de recordações. Até o padre
Ramos veio à baila.
O padre Ramos era o professor de
História no Seminário, no nosso tempo. Muito erudito nas matérias que
professava, tinha o defeito de que costumam sofrer os professores que são
autores do livro pelo qual ensinam: para eles não há palavras que tão bem
definam uma ideia como as que eles escrevem. De aí resulta que o aluno chamado
à lição, ou diz, ipsis verbis, o que
está no livro, e recebe todas as contemplações do professor, acompanhados de
uma boa nota, ou vai corrido para o lugar com um foguete, que, na gíria escolar, era um nove.
Era isto o que me sucedia quando
era chamado à lição pelo padre Ramos. Nunca tive memória nem paciência para empinar a prosa dos livros, preferindo
dizer as coisas e exprimir as ideias por palavras minhas. Mas da primeira vez
em que fui chamado pelo padre Ramos, este divertiu-se um pouco à minha custa, já
lhe chegara aos ouvidos a fama da minha rabeca, e vá de fazer um pouco de
troça, pois ele era dotado de um espírito prosaico, pouco se comovendo com a
música:
— “É preciso também tocar esta
rabeca!”.
Foi uma risota na aula, é claro,
enquanto o padre Ramos batia no lado esquerdo do peito, levemente, com o punho,
tique de sua feição.
O Padre Ramos! Como nós o
recordámos, e a outros, naqueles breves momentos de agradável colóquio! Decerto
iremos ainda, mais uma vez, recordar esses tempos, esses deliciosos tempos,
como são todos os da mocidade distante. O que entristece é que, ao desfiar a
meada, fio por fio, encontramos quase todos caídos os companheiros desse tempo.
Já somos tão poucos, que às vezes penso que graves razões tem Deus contra mim,
para cá me conservar. Talvez a dar tempo a que eu me arrependa de todos os
pecados que cometi ou que redima, por qualquer forma digna, o que por redenção
possa ser expiado.
Seja o que Deus quiser, e até
qualquer destes dias, meu caro D. Manuel Maria.
(in Mensagem de 15 de abril de
1957)
António Augusto de Miranda
2 comentários:
Recordo-me perfeitamente do arcebispo de Cízico que foi almoçar num domingo a Fontes
Lembras-te? Se foi em 1957 (data da crónica) eu teria 4 anos. Tenho pena de não me lembrar mas, se contares algumas coisas acerca desse dia, pode ser que...
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