Recordando, abril de 1959


Telegrama de Viena (Áustria) noticiava há dias que uma camponesa dos arredores de Krems morreu vitimada por duas picadas de abelha, sendo uma na pálpebra direita e a outra na orelha esquerda, tendo-se dado a morte ao cabo de 20 minutos.
Isto não me espanta, pela razão que adiante vou relatar. As abelhas, bichinhos muito simpáticos que fabricam o doce mel, são de uma feroz irritabilidade e, pelo seu número, perigosas no ataque. A sua arma é o ferrão, aguilhão ou dardo, com o qual injectam um veneno que produz uma dor instantânea e intensa e que, no fim de contas, se é capaz de matar uma pessoa com duas picadas, em 20 minutos, também pode tirar-lhe as dores do reumatismo e até salvar-lhe a vida, como se tem verificado ultimamente. Os livros que tratam das abelhas, desde Eduardo Sequeira e Maeterlinck a Eduardo Sousa e Almeida (os que conheço), contam interessantes episódios sobre a vida das abelhas e o uso do seu ferrão. O primeiro escreveu: “Schweinfurt conta, na narrativa da sua viagem em África, que a corda que lhe arrastava o barco pelo Nilo acima, tombou, por acaso, uma colmeia cheia de abelhas que, furiosas, atacaram os passageiros do barco, ferindo-os a todos, e em especial a dois negros, que morreram em virtude das picadas”.
Noutro ponto relata o seguinte:
“No verão de 1891 presenciámos também o seguinte facto, numa propriedade de família, próximo da vila de Paredes. Ao lado de uma eira, estavam dois enxames, cada um em seu cortiço. Havia muito que as duas colónias ali trabalhavam pacificamente, sem se importarem com o bulício da eira. Uma tarde, porém, um malhador de milho, em desastrado movimento, bateu com o mangual em um dos cortiços, tombando-o. As abelhas saem em tropel, em larga nuvem. Picando quase todas as pessoas que se encontravam no local do sinistro. Apesar de ser imediatamente reparado o mal, naquele dia a ninguém mais foi possível aproximar-se da eira; e nos seguintes, logo que os aldeões começavam a malhar, aos primeiros movimentos dos manguais as abelhas atacavam denodadamente, pelo que foi preciso mudá-las de lugar”.
Eu também tenho que contar,
Foi em Vila Silva Porto, sede da comarca do Bié, a primeira em que servi como juiz. Comarca sertaneja, de pequeno movimento, eu necessitava de me entreter. Um enxame pousou, certo dia, em qualquer sítio, dentro da cerca das galinhas, que era ampla. Com um caixote improvisei uma colmeia, que ficou colocada mais ou menos no mesmo sítio, isto é, dentro da cerca das aves, que eram galinhas, perus e patos. Dentro de pouco tempo novo enxame ali apareceu, que mandei apanhar aos pretos, que são peritos no lidar com abelhas.
Tudo correu muito bem até ao dia em que uma galinha subiu para cima de um dos caixotes, que estavam a mais de um metro do solo; e uma vez ali, pôs-se a caçar abelhas. O que ela foi fazer! Dentro em breve, estava o enxame em guerra com a capoeira; ao enxame provocado juntou-se o outro, e a guerra generalizou-se a metade da vila. Todas as portas das imediações foram fechadas e viam-se os pretos, que passavam no largo fronteiro, a fugir, numa correria louca, sacudindo a cabeça a afugentar as abelhas que os perseguiam, assanhadas. Eu tive de me encerrar, com a família, em casa, de portas fechadas, e durante um ror de tempo. A certa altura decidi ir acudir à capoeira, onde os coelhos chiavam, as galinhas esvoaçavam espavoridas, os perus emitiam gluglus angustiosos. Envolvi a cabeça e as mãos, o melhor que pude, num mosquiteiro, e lá fui. Mas quê? Os coelhos tinham-se metido nas tocas, de onde nunca mais saíram. As galinhas estavam quase todas mortas ou moribundas e dos perús, mais sujeitos ao ataque dos ferrões das abelhas, nem um escapou. De todas as aves, ou porque se tenham metido num tanque, que ali havia com água, ou por qualquer outro motivo, apenas se salvaram os patos.
Não foi o prejuízo, que aliás foi considerável, que me fez perder a cabeça, mas o desgosto, e a mágoa, que me causou o espectáculo daquela mortandade nos animais, enchendo os ares com os seus lamentos de sofrimento, que me fez perdê-la. Aquilo só acabou à noite, e felizmente passou-se do lado da tarde; porque, se fosse do lado da manhã, a coisa seria mais séria.
Desesperado, dei ordem aos criados que regassem as colmeias com gasolina e lhe deitassem fogo.
Ainda hoje, tantos anos passados, tenho remorsos deste acto de selvajaria, que, em certa medida, foi desculpável.
Abelhas?
Interessantíssimos animais, mas ao largo! Cá nos meus domínios não as quero. Gosto muito do mel que elas fabricam e com que bastas vezes presenteio os netos, que por ele dão cavaco e lhes faz muito bem. Tenho uma grande simpatia e admiração pelo seu labor e a sua excelente organização social, que devia, em certa medida, servir de exemplo aos homens irrequietos. Contemplo-as e acarinho-as (e respeito-as) quando as vejo volitando de flor em flor, no meu jardim ou no meu pomar, à procura do néctar de que fazem o saboroso mel e a útil cera com que são fabricadas as velas do altar – mas, como disse, que façam tudo isso em lugar afastado, escondido, como aliás elas gostam, longe do bulício dos homens e dos animais. Muito ciosas, muito avaras do que lhes pertence, são, por isso, muito desconfiadas e castigam sem dó nem piedade quem pode representar uma ameaça aos seus domínios.
(in Mensagem de 15 de abril de 1959)

António Augusto de Miranda

2 comentários:

LUIS PINHO MIRANDA disse...

A mim também não…

Recordando disse...

Pois eu fui ferrada duas vezes.
Uma, na planta do pé, lá em casa do avô em Alquerubim. Lembro-me que andava descalça cá fora e que pisei umas folhas... uiiiiiii! Que dor!
A outra foi no recreio do colégio, na Vila da Feira, uma ferrou-me na pálpebra!