Artistas do Reino Animal
Ainda não chegou, a ocupar o seu
posto defronte do eu quarto, o rouxinol que, todos os anos, desde a minha
meninice, pousa naquela combreira de lamegueiros e sabugueiros, ali constrói o
ninho, cria os filhos e enche os ares, de dia e de noite, da sua música
trinada, sonora e variada até ao infinito. Quantas gerações de rouxinois terão
ali vivido durante a época da criação? É uma cadeia ininterrupta, dando a ideia
de ser o mesmo rouxinol que há mais de 60 anos eu tenho ouvido lá cantar,
durante as primaveras que me tem sido dado passar na minha terra, primeiramente
nas primeiras idades, ultimamente na velhice.
Também a combreira parece ser a
mesma, e ainda lá deve ir fazer ninho, metido nas ervas que guarnecem o cômoro,
uma carriça que eu conheci e que já não estranhava a minha presença. E que
perfeição de ninho a carriça construía! O rouxinol, não, esse construía um
ninho de pouco trabalho, porque todos os seus dotes artísticos vão para a
música, para o canto, em que é rei entre a passarada livre.
Costuma chegar em meados de
Abril, por isso deve estar a arrebentar. Ele dá logo acordo de si, porque não
gosta de perder tempo. É ave de arribação; se adregasse ficar por cá durante o
inverno, decerto não resistia ao rigor do clima, como as andorinhas. Estas,
porém, aguentam-se melhor. Vêm mais cedo e partem mais tarde. Não cantam, na
acepção em que estamos considerando as aves. Mas enchem os ares de alegria com
o seu vôo rápido, na caça aos insectos de que vivem, e com a garrulice em que
se entretêm, quando pousadas aos bandos nos beirais. Não cantam, é certo, mas
as suas prendas são impagáveis: uma, pela necessidade que elas têm de se
alimentarem, consiste na caça implacável que movem aos insectos inimigos do
homem e das hortas; outra é a arte com que constroem os ninhos, feitos de lama
com uma rapidez desconcertante e que elas dependuram por baixo das varandas das
casas de habitação.
Creio que as andorinhas merecem
ao rapazio das nossas aldeias o respeito que se lhes deve pelos relevantes
serviços que prestam à agricultura. Igual respeito merecem os rouxinois, que só
de vermes vivem. Em última análise, todos os passarinhos deviam ser poupados à
perseguição destruidora da garotada. Mas vamos lá convencê-los disso! O próprio
pardal, descarado e rapace, que todos os dias se refastela, aos bandos, na
refeição da manhã, de gorra com os meus faisões, esse mesmo, bem pesadas as
coisas, não merece a perseguição que se lhe move. Mas em certos casos faz-nos
perder a paciência. Conseguir que um leirão de ervilhas semeadas em Janeiro,
vingue, subtraídas à fúria voraz dos pardais, é uma lança em África. Mas
afirmam os homens das ciências ornitológicas que os pardais compensam em bichos
que destroem os estragos que fazem nas culturas.
Eu, neste capítulo, ponho as
minhas reticências à ciência dos mestres, que não ponho em dúvida, mas por cima
da qual salto, toda a vez que posso destruir um ninho de pardal. Na Primavera, cubro
os alfobres das ervilhas com redes, porque os pardais já não se afugentam com
espantalhos e moinhos de vento. O século vinte trouxe muita ciência aos seres
atrazados, desde o homem da selva ao pardal engravatado. Todos sabem os
direitos com que nasceram. E eu, que sou um jurista e me prezo de ser um homem
de bem, sempre que surpreendo os rapazes, ali no caminho junto do meu quintal,
à cata de ninhos, trato logo de os afugentar, pregando-lhes um sermão, daqueles
sermões que no meu tempo nós ouvíamos na escola, e que me parece estarem fora
dos programas de hoje. E êles, ou por efeito do sermão, ou por respeito por mim
— ainda não sei bem ao certo — lá se vão embora um pouco arrastadamente, parece
que com pouca vontade, mas vão-se, deixando os passarinhos e os seus ninhos em
paz. E eu, na noite desse dia, até durmo melhor, de satisfeito. No entanto devo
confessar que, quando destruo um ninho de pardal, não tenho remorso que me tire
o sono. Que querem? Fraquezas humanas…
É que o pardal não tem prenda que
o recomende. Não canta nem faz um ninho com jeito. Êste é um braçado de palhas
e penas de galinha, onde ele vai despejar os ovos sem graça nenhuma. Ali o meu
vizinho Juca Sineiro diz que o único mérito dos pardais é fazerem uma boa
arrozada. Por isso, quando no meu beiral há ninhos com pardalitos já prestes a
voar, êle tem licença para os vir caçar. Mas eu, apesar de tudo, não os quero
ver. O Juca lá os caça, lá os cozinha, lá os come. No dia seguinte até parece
que está mais gordo.
Nunca gostei de fazer mal, mesmo
aos bichos. Pelo contrário, sempre me comprazi com fazer bem. Quando eu era
garoto, mandaram-me enterrar um gatinho recém-nascido, que ainda não abria os
olhos; êste é o hábito cá dos meios rurais, quando se querem desfazer da prole
supérflua de uma gata. Processo meio bárbaro, temos de convir. Eu não gostei da
missão, e deixei o gatinho mal coberto de uma leve camada de terra. Fui para a
escola e não sosseguei enquanto, de regresso a casa, me não dirigi ao sítio
onde deixara o gatinho, que descobri da terra sob que estava, e, ainda vivo,
fui coloca-lo no ninho de onde fora tirado e onde a gata o foi encontrar,
transportando-o para outro sítio, como elas costumam fazer, abocando os filhos
pelo cachaço, quando os querem colocar em sítio mais seguro.
Dizem que os gatos têm sete
fôlegos e o caso é que o gatito escapou da morte, nunca mais ninguém sabendo
como apareceu outro filho de uma gata que tivera só um, que fora morto.
E como as palavras são como as
cerejas, tenho de deixar o rouxinol para outra vez. Como êle ainda não chegou,
dele falarei no próximo número, se Deus quiser.
(in Mensagem de 15 de abril de 1961)
António Augusto de Miranda
5 comentários:
Eu do que me recordo melhor do Juca Sineiro é da sande dos miúdos de leitão que ele me arranjava logo pela manhãzinha, junto ao forno, quando ia assar um leitão a casa do avô. Ah! E também das frases com rima que ele tinha por uso compor.
Mário, dessa da sande de miúdos de leitão é que eu não sabia 😃
Lembro-me muito bem do Juca. De ele assar o leitão e de nós até dizermos que ele estava a ficar parecido com os leitões. Também me lembro de que, sempre que o encontrava, geralmente na ladeira, eu lhe pedia um verso. E ele fazia-o sempre. Tentei, mas com pouco sucesso, imaginar o que ele me diria se o encontrasse agora e lhe pedisse como de costume:
"Juca, faça um verso por favor!"
"Um verso a menina me pede
E eu a vontade lhe vou fazer
Mas antes de tudo o mais
Os pardalitos vou comer!"
Fraquinho, não é? Mas foi com boa vontade e em memória do Juca!
Lembro-me muito bem do Juca, que eu julgava ser Zuca. Lembro-me de onde vinha, como andava e como versejava à moda de António Aleixo. E claro, lembro-me muito bem dos leitões que ele assava no forno que ainda lá está…
Canário não tenho mas andam por cá os esquivos melros que saltam da propriedade que foi do tio Vicente e me comem tudo o que é morango maduro, os espertos. Quanto aos calhordas dos pardais enchem-me os beirais de filharada e lixo que é um desassossego. Houvera alguém que mos papasse e dava-os de bom grado. Os rouxinóis continuam a encantar o quintal: trinam à tardinha nos dias quentes que ē um regalo ouvi-los.
Mas, oh! avô, esqueceu-se da poupa! O mais bonito dos pássaros que pululam por estas bandas. Desconfiada como a pega e o melro mas mais difícil de observar. Tenho-a apanhado pelas 7 da manhã no jardim a bicar e a saltitar. Quando me vê olha-me assustada, ergue a poupa listrada e levanta voo rasante. Julgo que terá feito ninho perto da casa de Fontes que foi dos Nogueira Lemos. Ouço-lhe bem perto o piar inconfundível com muita frequência.
Pois é, meu avô, também me apraz ouvir a passarada que permanece geração após geração a encantar o quintal nos deixou.
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