Recordando, fevereiro de 1958


Há um brocardo muito certo que diz: «recordar é viver». Por isso, eu, que me sinto entrado na idade, lancei mão deste género de colaboração na «Mensagem», para ver se, recordando coisas e pessoas de outros tempos, posso ter a ilusão que as sinto à roda de mim.
Mas poucas pessoas desse tempo ainda estão vivas, e muitas das coisas mudaram. O mundo parece-me outro — não só por isso, mas também porque a mentalidade difere da daquele tempo, numas coisas para melhor, noutras para pior…
Uma dessas poucas pessoas que ainda vivem — e Deus queira que seja por muitos anos e bons! — é o meu querido (e velho, já se vê), amigo, Manuel Henriques Marques, conhecido por Manuel da Lavoura (sem ofensa). É um tudo-nada mais velho que eu: uma questão de meses, ou um ano, se tanto.
Tive sempre por ele uma grande ternura, desde o dia, que nunca esquece, em que foi meu parceiro no acto da primeira comunhão. Minha mãe já dedicava à sua família a mesma ternura, e foi por isso que ela o escolheu para meu parceiro naquele acto solene. Depois, pela vida adiante, éramos, na brincadeira, uns dos mais unidos; e se mais vezes nos não encontrávamos, era porque morávamos distantes: ele, na «Lavoura», que é um recanto do lugar do Ameal; eu, cá em Fontes, lugar que é o coração da freguesia (se lhe chamo assim, é porque neste lugar se ergue a elegante igreja matriz da freguesia, e não por ser o mais populoso, pois o lugar do Ameal, neste sentido, é o maior).
Os meus companheiros mais assíduos na brincadeira, como eu já disse numa das crónicas anteriores, eram os filhos do bom do tio Bernardo da Capela, porque éramos vizinhos. Com o Manuel da Lavoura, juntava-me menos vezes, porque ele morava longe. Era ele também um dos poucos com quem a minha mãe permitia que eu me juntasse. Sabendo que eu andava com ele, estava descansada, como sossegada ficava sabendo-me na companhia dos da Capela. Minha mãe tinha dedo para estas coisas…
De uma vez, já eu era espigadote (e isto deve ter-se dado mais vezes com outros), encontrando-me na companhia de outro rapaz de quem ela não gostava, deu-me um tamanho tabefe, fazendo-me marchar na sua frente a toque de caixa, que isto nunca mais me esqueceu.
Como todos os rapazes da aldeia, nós gostávamos de andar aos ninhos. Pobres passarinhos! Como hoje, passados tantos anos, eu lamento os grandes desgostos que vos dei, quando destrui os vossos lares, quantas vezes ocupados pelos seres que eram toda a vossa ternura!
E nesse passatempo nos encontrámos um dia — eu e o Manuel da Lavoura, numa pequena mata que ficava perto do Serrado, junto ao caminho que vai dar ao fundo do aido dele.
Nesse dia o nosso objectivo era um ninho de melro, que o Manuel tinha visto introduzir-se no emaranhado das silvas, levando no bico o biscato para os filhos.
As crianças ainda não têm a sensibilidade amadurecida, porque, se assim fosse, não tinham coragem de destruir um ninho habitado por aves ainda implumes.
Os tormentos que passámos para encontrar aquele ninho! E, afinal, para quê? Para eu ficar de fato roto, cara e mãos ensanguentadas, porque, tendo descoberto o ninho, perdi a cabeça e lancei-me na conquista dele, por entre os arbustos e as silvas. Estas não perdoam a quem se atreve a desvendar os seus arcanos. Fiquei numa lástima, porque a certa altura faltou-me o pé e estatelei-me no meio da sarça agressiva, todo magoado pelos espinhos, mas mais magoado pelo riso sarcástico do melro que, pressentindo-me perto, lançou vôo através dos arbustos, quase roçando-me a cara ensanguentada e picando-me os ouvidos com o seu piar que não sei se era de susto, se de alegria pelo castigo que sofri:
— Pim, pim, pim, pim, pim…
Nesse dia não apanhei. Valeu-me o prestígio do Manuel, que confirmou a peta que nós, como bons amigos, fomos planeando pelo caminho. Minha mãe compreendeu tudo, mas não se deu por achada. Limitou-se a lavar-me as arranhaduras com arnica e desde esse dia a minha amizade pelo Manuel da Lavoura duplicou.
(in Mensagem de 15 de fevereiro de 1958)
António Augusto de Miranda

2 comentários:

Mário Pinho de Miranda disse...

Ao ler esta crónica, logo na 3ª palavra, encontrei um vocábulo (BROCADO) aplicado com um significado que eu desconhecia mas que, pelo sentido, depreendi estar aplicado como sinónimo de "adágio", "ditado", etc. De qualquer modo decidi consultar o dicionário e, para além do significado mais comum ("pano bordado a fio de ouro"), encontrei "furado com broca" e, utilizado no Brasil, como sinónimo de "aforismo" (lá está), "máxima ou texto breve que explica uma regra ou princípio moral", "texto que expressa concisamente um conceito e regra jurídica" e, pasme-se, "esfomeado".
Curiosamente, ao longo do texto encontrei várias outras palavras caídas hoje em desuso ou usadas com outras sinonímias. Aqui vão elas: "biscato" (pequeno trabalho/comida que as aves transportam no bico para as crias), "implumes" (sem penas), "arcano" (mistério), "sarça" (mato), "arnica" (erva medicinal).

Recordando disse...

Olá, Mário. Quando vi esta palavra "brocardo" também fui ao dicionário. Não a encontrei no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, mas encontrei no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e num outro bem mais antigo da Lello & Irmão, Dicionário Prático Ilustrado. Neste úlimo, como 1.º significado aparece axioma jurídico, seguindo-se aphorismo, anexim, máxima.
O que nós aprendemos, não é?