Recordando, janeiro de 1959


O primeiro aparelho receptor de radiofonia que entrou em Alquerubim foi o que eu adquiri em 1927, estava eu de licença graciosa na metrópole. Era um aparelho de quatro lâmpadas, sem marca conhecida, creio mesmo que tinha sido montado por uma amador, como era costume naquele tempo, em que não se construíam receptores por série, como mais tarde passou a fazer-se. Vendiam-se as peças avulsas, para serem montadas em casa. Foi assim que a Telefonia Sem Fios (T.S.F.) tomou um avanço rápido no seu aperfeiçoamento, graças ao entusiasmo dos amadores, que generalizaram ràpidamente o gosto pela aliciante invenção.
Era um aparelho que, como os demais nessa época, precisava de se lhe mexer nos botões com um comprido manípulo feito de qualquer material isolador, que geralmente era madeira, pouco mais ou menos de um palmo de comprimento — tanto como o necessário para não se produzirem os característicos úivos emitidos pelo receptor, semelhantes ao miar de um gato em Janeiro.
Não tinha altifalante integrado no próprio receptor, como hoje se usa. Os altifalantes vendiam-se separadamente, e ligavam-se ao aparelho por uma ficha. Ainda me lembro do nome do fabricante do meu: «Le Las». Antes, porém, do aparecimento dos altifalantes, ouvia-se por meio de auscultador, que, colocado nos ouvidos, apenas permitia ouvir a pessoa que tinha o auscultador aplicado. Foi nesta fase que eu fiz a minha iniciação como radiófilo amador. Só passados alguns meses adquiri o altifalante.
Naquela fase de amadorismo contagioso, as estações emissoras emitiam ondas longas, e começavam-se as experiências com as ondas médias. Por isso as antenas eram de um comprimento enorme, para o que concorria, suponho eu, a pequena aplicação que se fazia dos enrolamentos que vieram depois suprir o comprimento da antena, que nalguns casos deixou de se usar. Eu estava instalado em casa da minha sogra, ali no chafariz de Fontes, que está hoje ocupando o lugar onde durante muitos anos (e quem sabe se séculos!) esteve um cruzeiro, que o camartelo da ignorância destruiu! Instalei o receptor na sala de visitas e coloquei a antena ligada a um lamegueiro que existia no terreno que é hoje do meu cunhado Vicente de Almeida, defronte da casa, onde actualmente está a oficina de José Dias do Reis.
Foi um espanto na freguesia!
— Para que quer êle este fio? — perguntavam os que passavam.
Os que já tinham ouvido falar do caso, explicavam ou tentavam explicar:
— Diz que é para ouvir a Espanha numa caixa que êle tem lá em casa.
Nesse tempo ainda se não falava em emissoras portuguesas.
Mas a dúvida, para não dizer a chacota, acabava sempre por vencer nestes diálogos ocasionais.
Um dia, surpreendi dois dos mais aproveitáveis aldeões, que miravam e tornavam a mirar o fio, da árvore para a varanda e da varanda para a árvore. Estiveram durante muito tempo naquela atitude, calados, até que um, meneando a cabeça, disse:
— Ná! Essa não me entra cá na cachimónia! Pois se o fio acaba aqui, como pode ele apanhar o que se passa lá pela Espanha? Eu cá não acredito. Aquilo deve ser algum gramofone.
Eu deixei-os aproximar até passarem defronte da janela e chamei-os, convidando-os para irem ouvir e ver.
O aparelho estava sintonizado com o único posto emissor de Madrid, que trabalhava em onda comprida, emitindo linda música espanhola; mas como ainda não tinha altifalante, era preciso colocar o auscultador nos ouvidos.
Peguei nele e fiz o gesto de o colocar na cabeça do mais experto dos dois. O que eu quis fazer! Desconfiado, não consentiu que lhe pusesse o auscultador, por mais demonstrações que eu fizesse em mim próprio.
Mas, ao contrário do que eu esperava, o outro encheu-se de coragem e pega no instrumento e, com a minha ajuda, coloca-o na cabeça e eu adapto-lho aos ouvidos.
Foi um deslumbramento! Os olhos denunciavam toda a sua admiração e surpresa, a pontos do outro, que se tinha como mais sabido, resolver-se também a experimentar.
O seu espanto foi indescritível. No entanto, tira o auscultador, e levanta a tampa do receptor, que mirou e remirou por dentro, sem nada dizer. Depois fechou a tampa e olhou para debaixo da mesa, para os lados, para os fios que estavam ligados ao aparelho. Não tendo mais nada para examinar, sai-se com esta, todo envolto na sua inocente fatuidade:
— Isto só pelo Dianho! Não tem outra explicação!
Na verdade, seria inútil outra explicação, porque nunca chegaria a compreendê-lo.
(in Mensagem de 15 de janeiro de 1959)
António Augusto de Miranda

1 comentário:

Maria José Miranda disse...

Uma crónica interessantíssima sobre os primeiros passos da rádio em Portugal.
O avô era uma pessoa muito moderna no seu tempo