O primeiro aparelho receptor de
radiofonia que entrou em Alquerubim foi o que eu adquiri em 1927, estava eu de
licença graciosa na metrópole. Era um aparelho de quatro lâmpadas, sem marca
conhecida, creio mesmo que tinha sido montado por uma amador, como era costume
naquele tempo, em que não se construíam receptores por série, como mais tarde
passou a fazer-se. Vendiam-se as peças avulsas, para serem montadas em casa.
Foi assim que a Telefonia Sem Fios (T.S.F.) tomou um avanço rápido no seu
aperfeiçoamento, graças ao entusiasmo dos amadores, que generalizaram
ràpidamente o gosto pela aliciante invenção.
Era um aparelho que, como os
demais nessa época, precisava de se lhe mexer nos botões com um comprido
manípulo feito de qualquer material isolador, que geralmente era madeira, pouco
mais ou menos de um palmo de comprimento — tanto como o necessário para não se
produzirem os característicos úivos emitidos pelo receptor, semelhantes ao miar
de um gato em Janeiro.
Não tinha altifalante integrado
no próprio receptor, como hoje se usa. Os altifalantes vendiam-se
separadamente, e ligavam-se ao aparelho por uma ficha. Ainda me lembro do nome
do fabricante do meu: «Le Las». Antes, porém, do aparecimento dos altifalantes,
ouvia-se por meio de auscultador, que, colocado nos ouvidos, apenas permitia
ouvir a pessoa que tinha o auscultador aplicado. Foi nesta fase que eu fiz a
minha iniciação como radiófilo amador. Só passados alguns meses adquiri o
altifalante.
Naquela fase de amadorismo contagioso, as estações
emissoras emitiam ondas longas, e começavam-se as experiências com as ondas
médias. Por isso as antenas eram de um comprimento enorme, para o que
concorria, suponho eu, a pequena aplicação que se fazia dos enrolamentos que
vieram depois suprir o comprimento da antena, que nalguns casos deixou de se
usar. Eu estava instalado em casa da minha sogra, ali no chafariz de Fontes,
que está hoje ocupando o lugar onde durante muitos anos (e quem sabe se
séculos!) esteve um cruzeiro, que o camartelo da ignorância destruiu! Instalei
o receptor na sala de visitas e coloquei a antena ligada a um lamegueiro que
existia no terreno que é hoje do meu cunhado Vicente de Almeida, defronte da
casa, onde actualmente está a oficina de José Dias do Reis.
Foi um espanto na freguesia!
— Para que quer êle este fio? —
perguntavam os que passavam.
Os que já tinham ouvido falar do
caso, explicavam ou tentavam explicar:
— Diz que é para ouvir a Espanha
numa caixa que êle tem lá em casa.
Nesse tempo ainda se não falava
em emissoras portuguesas.
Mas a dúvida, para não dizer a
chacota, acabava sempre por vencer nestes diálogos ocasionais.
Um dia, surpreendi dois dos mais
aproveitáveis aldeões, que miravam e tornavam a mirar o fio, da árvore para a
varanda e da varanda para a árvore. Estiveram durante muito tempo naquela
atitude, calados, até que um, meneando a cabeça, disse:
— Ná! Essa não me entra cá na
cachimónia! Pois se o fio acaba aqui, como pode ele apanhar o que se passa lá
pela Espanha? Eu cá não acredito. Aquilo deve ser algum gramofone.
Eu deixei-os aproximar até
passarem defronte da janela e chamei-os, convidando-os para irem ouvir e ver.
O aparelho estava sintonizado com
o único posto emissor de Madrid, que trabalhava em onda comprida, emitindo
linda música espanhola; mas como ainda não tinha altifalante, era preciso colocar
o auscultador nos ouvidos.
Peguei nele e fiz o gesto de o
colocar na cabeça do mais experto dos
dois. O que eu quis fazer! Desconfiado, não consentiu que lhe pusesse o
auscultador, por mais demonstrações que eu fizesse em mim próprio.
Mas, ao contrário do que eu
esperava, o outro encheu-se de coragem e pega no instrumento e, com a minha
ajuda, coloca-o na cabeça e eu adapto-lho aos ouvidos.
Foi um deslumbramento! Os olhos
denunciavam toda a sua admiração e surpresa, a pontos do outro, que se tinha
como mais sabido, resolver-se também a experimentar.
O seu espanto foi indescritível.
No entanto, tira o auscultador, e levanta a tampa do receptor, que mirou e
remirou por dentro, sem nada dizer. Depois fechou a tampa e olhou para debaixo
da mesa, para os lados, para os fios que estavam ligados ao aparelho. Não tendo
mais nada para examinar, sai-se com esta, todo envolto na sua inocente
fatuidade:
— Isto só pelo Dianho! Não tem
outra explicação!
Na verdade, seria inútil outra
explicação, porque nunca chegaria a compreendê-lo.
(in Mensagem de 15 de janeiro de
1959)
António Augusto de Miranda
1 comentário:
Uma crónica interessantíssima sobre os primeiros passos da rádio em Portugal.
O avô era uma pessoa muito moderna no seu tempo
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