Em Fevereiro de 1923, por motivo
de promoção, fui transferido da comarca de Tete, em Moçambique — a primeira
onde servi no Ultramar — para a de Moçâmedes, em Angola.
Naquele tempo, ir para as
colónias ainda representava, na maior parte dos casos, um certo sacrifício, por
vezes um grande sacrifício. Quem hoje faz carreira pelo Ultramar, nestes tempos
em que a mais sertaneja vilória oferece todas as comodidades modernas, não faz
ideia das dificuldades com que a maior parte das vezes tínhamos de lutar. Ainda
me lembro da conversa que tive, um dia, com o desembargador da recém-criada
Relação de Coimbra, Dr. Augusto Ferreira dos santos, que fez uma brilhante
carreira no Ultramar, e a quem eu, que pensava seguir a magistratura
ultramarina, pedi certas informações de que necessitava:
— Não se iluda — disse-me êle. As
vantagens que tiramos do Ultramar são bem amargadas pelas contrariedades que
temos de suportar. Mais vale ganhar aqui dez do que lá vinte.
No entanto, eu obedeci à voz que
canta dentro de cada português, convidando-o a experimentar a aventura; e lá
fui, de abalada, com a mulher e um filho de 8 meses.
Ainda hei-de contar o que foi
esta viagem, se Deus me der vida, saúde e coragem, as quais se me vão
extinguindo a passos apressados.
Comecei por Tete, como digo
acima. Ali me conservei perto de 3 anos, naquele clima tórrido, onde se pode
estrelar um ovo numa pedra aquecida ao sol do meio dia. Também tenho que
contar, do que lá passei.
Transferido dali para Moçâmedes,
fizemos a viagem pelo Chinde, descendo o Zambeze, cheio a transbordar,
inundando os terrenos marginais numa extensão de muitos quilómetros.
Espectáculo soberbo! O Chinde, depois do ciclone de 1922, não era o mesmo que
eu conheci em 1920, quando na minha passagem para Tete. Tendo deixado de ser
porto de embarque do açúcar das fábricas instaladas nas suas margens, o qual
passou a ser transportado no caminho de ferro trans-zambeziano da Beira a
Blantyre (Niassalândia), o porto do Chinde caiu verticalmente. Isto, juntamente
com os estragos causados pelo ciclone a que acima aludo e a que já fiz
referência em uma das minhas crónicas, fez daquele porto, que está sujeito ao
vai-vem das areias movediças do delta do Zambeze, um porto de baixa categoria.
Ali fizemos transbordo para o
«Manica», pequeno vapor de cabotagem de 900 toneladas que nos transportou a
Lourenço Marques, sem mais escala, em 3 dias, por cima de um mar meio
encapelado, que fazia o pequeno navio dançar como uma casca de noz.
Nunca enjoei, em qualquer espécie
de transporte: nem de barco, de avião, de carro ou de comboio; no entanto,
senti-me aliviado quando calquei terra firme ao desembarcar em Lourenço
Marques.
Eu já conhecia a capital de
Moçambique, da minha passagem ali, três anos antes, a caminho de Tete, via
Beira. Mas apenas lá permanecera algumas horas, pois ia directo à Beira, onde
fiz transbordo para o Chinde.
Quando desembarquei em Lourenço
Marques, estava atracado ao cais, se não estou em êrro, o vapor de grande
tonelagem, antigo «Moçambique», o mesmo navio que me levara de Lisboa à Beira
na minha primeira viagem para o Ultramar. Era impossível apanhá-lo para seguir
nele para Moçâmedes, por falta de tempo para desembarque da bagagem e tratar
das formalidades oficiais, pois nós viajávamos à custa do Estado.
Além disso, convinha-me um
período de descanso em Lourenço Marques, cidade já naquele tempo dotada de todo
o conforto e dispondo de todos os recursos, quer próprios, quer resultantes da
sua proximidade da União Sul-Africana, a umas escassas horas de automóvel e a
cerca de 12 de comboio. Levávamos o filho mais novo muito doente. Ficara-nos
uma filha de 3 meses enterrada em Tete, e este também lá teria ficado se lá
continuássemos.
Convinha-me, por isso, um pequeno
descanso em Lourenço Marques, antes de seguirmos para Moçâmedes, terra plantada
nos confins do deserto de Kalahari, a qual eu ainda não conhecia senão do mapa,
porque a minha primeira viagem tivera por primeira etapa a grande tirada de
Lisboa ao Cabo, sem tocar nos portos da África Ocidental.
Mas esta já vai longa e, embora
sem interesse, tenho de lhe pôr ponto final, que não há espaço para mais.
Continuarei no próximo número, e oxalá com mais interesse, como espero.
(in Mensagem de 15 de junho de 1959)
António Augusto de Miranda
2 comentários:
Não sabia que o avô tinha tido uma filha que seria, portanto, minha tia
Pois é verdade. Eu lembro-me de o pai falar nisso quando nos contou por que é que o avô tinha pedido a transferência de Tete.
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