Como foi conquistada a ilha da Taipa, de Macau
PONDO em ordem velhos papeis
guardados em pastas, o que me faz prolongar esta vida já longa, cheia de
recordações, encontrei entre êles os seguintes apontamentos referentes a Macau,
onde servi como juiz de direito de 1936 a 1939. Porque acho interessantíssimo o
que neles se relata, procuro dar-lhe forma, para os lançar nas colunas de
«Mensagem». Estes apontamentos foram respigados de um antigo alfarrábio, de
natureza histórica, tudo levando a acreditar que se trata de um episódio
verdadeiro, enquistado na nossa história ultramarina.
Todos os portugueses de mediana
cultura sabem como Macau, situada numa península ao sul da China, acrescida das
ilhas de Taipa e de Coloane, que lhe ficam perto, veio à posse de Portugal: Foi
uma dádiva do imperador da China, no século 16, em recompensa de altos serviços
prestados pelos portugueses na defesa da soberania chinesa contra as investidas
dos piratas que infestavam a região.
A princípio, a soberania
portuguesa limitava-se ao território que hoje está ocupado pela cidade. Por
ocupações sucessivas, a nossa soberania foi-se estendendo às ilhas vizinhas:
Lapa, D. João, Taipa e Coloane. Mas as duas primeiras deixámo-las regressar à
soberania chinesa, por desleixo na sua ocupação. Se a aquisição da parte onde
fica a cidade é interessante pela forma como se realizou, a da ilha da Taipa,
que lhe fica fronteira, assume feição inédita e anedótica, como relata o
alfarrábio de onde respiguei estes apontamentos, como passo a contar.
Governava Macau, havia pouco
tempo, José Gregório Pegado, a quem o vice-rei Ki-Ying convidou para um
banquete em Cantão. Êste convite caiu no ânimo do governador Pegado como sopa
no mel, pois ardendo em desejos de instalar uma fortaleza na Taipa, era a
ocasião propícia para obter do vice-rei a necessária autorização.
O governador tratou de se
instruir no conhecimento da etiqueta chinesa, sobretudo no que respeita ao modo
como se devia comportar à mesa, pois é aqui que ela é mais rigorosa e mais
difícil para um estrangeiro. O seu instrutor pô-lo em condições de bem se
apresentar à mesa do alto funcionário que o convidava, e recomendou-lhe, muito
em especial, para o êxito ser completo, que comesse de tudo e não rejeitasse
coisa alguma do que o vice-rei lhe oferecesse nas pontas dos seus fai-chis (dois pausinhos de que os
chineses se servem para comer), pois se isto é o cúmulo de delicadeza da parte
de um china para com o seu hóspede, não é menor da parte deste aceitar o gesto
com agrado. O china é naturalmente delicado e de uma sensibilidade extrema no
trato social; e quando um estrangeiro lhe cai
no goto procurando agradar-lhe no tocante a delicadezas, consegue dêle
quanto um estrangeiro pode conseguir de um china, para mais um governador
português, que naquele tempo ainda era o representante do Ta-ssi-yiang-kuo (grande reino do mar do oeste), como era e ainda é
conhecido Portugal, embora hoje, pela influência dos ingleses, o Ta (grande) já esteja quasi fora de uso.
Animado desta esperança, o
governador Pegado partiu para Cantão onde, após as visitas da praxe, se
realizou o banquete em sua honra.
Um banquete chinês é qualquer
coisa de fenomenal. Um banal jantar de pessoa rica oferecido aos seus
convidados não consta de menos de 10 a 15 iguarias, fora as bebidas e os
aperitivos. Um banquete do género daquele que foi oferecido ao nosso governador
não devia constar de menos de 40 a 50 iguarias. No trabalho de compilação
histórica do qual extraí estas notas, vêm listas de três banquetes chineses. O
primeiro, realizado em Tientsin, a que assistiu Eugenio Buissonet, constou de
11 pratos hors d’oeuvre; 8 no
primeiro serviço; 8 no segundo serviço; 5 no terceiro, e tudo regado com cinco
espécies de líquidos. Ao todo 32 iguarias!
Foi com um menu destes que o nosso governador teve de se bater — e
heroicamente, segundo reza a crónica — para conseguir estabelecer-se na ilha da
Taipa. De resto com a disposição de comer de tudo, talvez o perigo da vida
neste combate não fosse menor do que se expusesse o peito às balas…
Quáse no fim do jantar, quando
esperava a oportunidade para abordar o assunto que acima de tudo ali o levara,
chegado como era o momento, em todos os banquetes, que bem se pode chamar o
momento das grandes concessões, a sorte favoreceu-o com uma pergunta do
vice-rei, que desejava saber se lá na sua pátria distante havia porcos gordos e
cevados.
Se os havia! E os melhores do
mundo!
E, por intermédio do intérprete,
Pegado passou a descrever ao vice-rei as excelentes raças suinas portuguesas,
desde Trás-os-Montes e Beira até ao Alentejo, cujos montados alimentam aqueles
famosos porcos de côr avermelhada de cuja carne se fazem os ainda mais famosos
chouriços alentejanos; falou dos pingues toucinhos que são o conduto das
classes populares…
Os chineses têm uma especial
predilecção pela carne de porco, sendo grandes apreciadores do toucinho.
— Então V. Ex.ª, atalhou o
vice-rei num tom que não admitia réplica, embora sublinhado pela mais
encantadora das amabilidades — deve ser um grande apreciador de toucinho?
Pegado não queria faltar à
pragmática e sobretudo ao seu intento, por isso respondeu, na mais gentil das
maneiras e aparentando a mais profunda das convicções:
— Oh! Muitíssimo! É um dos
melhores manjares portugueses!
Estavam na altura do jantar em
que eram servidos uns bolos com recheio de toucinho em calda de açúcar e
feijão. O vice-rei, com toda a sua distinção, começou a partir os bolos e a
extrair deles os bocados de toucinho, que ele mesmo passou a servir, muito
mansa e cortêsmente, na ponta dos fai-chis
ensalivados, com que os ia metendo na boca do governador.
Noutras circunstâncias, Pegado
não teria tido a coragem de afrontar este ataque, porque o estômago
recusar-se-ia a receber, depois de abarrotado com um arsenal de comida, mais
uma iguaria enfartadiça, metida contra sua vontade e em tal abundância, para
mais servida nos pausinhos besuntados com que o vice-rei tinha comido. Mas,
como observa o cronista, a Pátria exigia dele este sacrifício: lembrou-se da Taipa
e da grande vantagem que advinha da sua anexação à colónia portuguesa que
governava, e levou o seu heroísmo até ao fim, comendo toucinho até lhe chegar
com os dedos!
A sua coragem foi recompensada,
porque o vice-rei, vencido pela sua grande prova de cortesia, consentiu que o
seu hóspede estabelecesse na ilha a ambicionada fortaleza, que marcou a nossa
incontestada posse naquela parcela do território nacional, que ainda hoje é
nossa, graças à coragem gastronómica do então governador de Macau.
António Augusto de Miranda
2 comentários:
Espetacular a descrição deste banquete. Estourem crer que muito da colorida festança é resultado da vivência de 3 anos enquanto jurisprudente
Caros conterrâneos:
Lembro-me do Dr. António Augusto de Miranda, desde garoto e de ir várias vezes levar o almoço ao meu pai (José Reis de Melo-carpinteiro e pedreiro), que junto com meu tio, Joaquim Henriques de Miranda, da mesma profissão, construíram a sua residência, em Fontes- Alquerubim.
Recordo-me ainda, das suas apreciadas crônicas, que durante anos, deram vida à "Mensagem", que levava um pouco de cultura aos seus leitores.
Como emigrei em 1952, perdi a ligação com essa publicação, que anos depois, deixou de ser publicada e que agora, revivo com saudosas lembranças.
José Miranda Reis de Melo
Conselheiro das Comunidades Portuguesas (CCP)
Recife / Brasil
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