Recordando, junho de 1962


Como foi conquistada a ilha da Taipa, de Macau
PONDO em ordem velhos papeis guardados em pastas, o que me faz prolongar esta vida já longa, cheia de recordações, encontrei entre êles os seguintes apontamentos referentes a Macau, onde servi como juiz de direito de 1936 a 1939. Porque acho interessantíssimo o que neles se relata, procuro dar-lhe forma, para os lançar nas colunas de «Mensagem». Estes apontamentos foram respigados de um antigo alfarrábio, de natureza histórica, tudo levando a acreditar que se trata de um episódio verdadeiro, enquistado na nossa história ultramarina.
Todos os portugueses de mediana cultura sabem como Macau, situada numa península ao sul da China, acrescida das ilhas de Taipa e de Coloane, que lhe ficam perto, veio à posse de Portugal: Foi uma dádiva do imperador da China, no século 16, em recompensa de altos serviços prestados pelos portugueses na defesa da soberania chinesa contra as investidas dos piratas que infestavam a região.
A princípio, a soberania portuguesa limitava-se ao território que hoje está ocupado pela cidade. Por ocupações sucessivas, a nossa soberania foi-se estendendo às ilhas vizinhas: Lapa, D. João, Taipa e Coloane. Mas as duas primeiras deixámo-las regressar à soberania chinesa, por desleixo na sua ocupação. Se a aquisição da parte onde fica a cidade é interessante pela forma como se realizou, a da ilha da Taipa, que lhe fica fronteira, assume feição inédita e anedótica, como relata o alfarrábio de onde respiguei estes apontamentos, como passo a contar.
Governava Macau, havia pouco tempo, José Gregório Pegado, a quem o vice-rei Ki-Ying convidou para um banquete em Cantão. Êste convite caiu no ânimo do governador Pegado como sopa no mel, pois ardendo em desejos de instalar uma fortaleza na Taipa, era a ocasião propícia para obter do vice-rei a necessária autorização.
O governador tratou de se instruir no conhecimento da etiqueta chinesa, sobretudo no que respeita ao modo como se devia comportar à mesa, pois é aqui que ela é mais rigorosa e mais difícil para um estrangeiro. O seu instrutor pô-lo em condições de bem se apresentar à mesa do alto funcionário que o convidava, e recomendou-lhe, muito em especial, para o êxito ser completo, que comesse de tudo e não rejeitasse coisa alguma do que o vice-rei lhe oferecesse nas pontas dos seus fai-chis (dois pausinhos de que os chineses se servem para comer), pois se isto é o cúmulo de delicadeza da parte de um china para com o seu hóspede, não é menor da parte deste aceitar o gesto com agrado. O china é naturalmente delicado e de uma sensibilidade extrema no trato social; e quando um estrangeiro lhe cai no goto procurando agradar-lhe no tocante a delicadezas, consegue dêle quanto um estrangeiro pode conseguir de um china, para mais um governador português, que naquele tempo ainda era o representante do Ta-ssi-yiang-kuo (grande reino do mar do oeste), como era e ainda é conhecido Portugal, embora hoje, pela influência dos ingleses, o Ta (grande) já esteja quasi fora de uso.
Animado desta esperança, o governador Pegado partiu para Cantão onde, após as visitas da praxe, se realizou o banquete em sua honra.
Um banquete chinês é qualquer coisa de fenomenal. Um banal jantar de pessoa rica oferecido aos seus convidados não consta de menos de 10 a 15 iguarias, fora as bebidas e os aperitivos. Um banquete do género daquele que foi oferecido ao nosso governador não devia constar de menos de 40 a 50 iguarias. No trabalho de compilação histórica do qual extraí estas notas, vêm listas de três banquetes chineses. O primeiro, realizado em Tientsin, a que assistiu Eugenio Buissonet, constou de 11 pratos hors d’oeuvre; 8 no primeiro serviço; 8 no segundo serviço; 5 no terceiro, e tudo regado com cinco espécies de líquidos. Ao todo 32 iguarias!
Foi com um menu destes que o nosso governador teve de se bater — e heroicamente, segundo reza a crónica — para conseguir estabelecer-se na ilha da Taipa. De resto com a disposição de comer de tudo, talvez o perigo da vida neste combate não fosse menor do que se expusesse o peito às balas…
Quáse no fim do jantar, quando esperava a oportunidade para abordar o assunto que acima de tudo ali o levara, chegado como era o momento, em todos os banquetes, que bem se pode chamar o momento das grandes concessões, a sorte favoreceu-o com uma pergunta do vice-rei, que desejava saber se lá na sua pátria distante havia porcos gordos e cevados.
Se os havia! E os melhores do mundo!
E, por intermédio do intérprete, Pegado passou a descrever ao vice-rei as excelentes raças suinas portuguesas, desde Trás-os-Montes e Beira até ao Alentejo, cujos montados alimentam aqueles famosos porcos de côr avermelhada de cuja carne se fazem os ainda mais famosos chouriços alentejanos; falou dos pingues toucinhos que são o conduto das classes populares…
Os chineses têm uma especial predilecção pela carne de porco, sendo grandes apreciadores do toucinho.
— Então V. Ex.ª, atalhou o vice-rei num tom que não admitia réplica, embora sublinhado pela mais encantadora das amabilidades — deve ser um grande apreciador de toucinho?
Pegado não queria faltar à pragmática e sobretudo ao seu intento, por isso respondeu, na mais gentil das maneiras e aparentando a mais profunda das convicções:
— Oh! Muitíssimo! É um dos melhores manjares portugueses!
Estavam na altura do jantar em que eram servidos uns bolos com recheio de toucinho em calda de açúcar e feijão. O vice-rei, com toda a sua distinção, começou a partir os bolos e a extrair deles os bocados de toucinho, que ele mesmo passou a servir, muito mansa e cortêsmente, na ponta dos fai-chis ensalivados, com que os ia metendo na boca do governador.
Noutras circunstâncias, Pegado não teria tido a coragem de afrontar este ataque, porque o estômago recusar-se-ia a receber, depois de abarrotado com um arsenal de comida, mais uma iguaria enfartadiça, metida contra sua vontade e em tal abundância, para mais servida nos pausinhos besuntados com que o vice-rei tinha comido. Mas, como observa o cronista, a Pátria exigia dele este sacrifício: lembrou-se da Taipa e da grande vantagem que advinha da sua anexação à colónia portuguesa que governava, e levou o seu heroísmo até ao fim, comendo toucinho até lhe chegar com os dedos!
A sua coragem foi recompensada, porque o vice-rei, vencido pela sua grande prova de cortesia, consentiu que o seu hóspede estabelecesse na ilha a ambicionada fortaleza, que marcou a nossa incontestada posse naquela parcela do território nacional, que ainda hoje é nossa, graças à coragem gastronómica do então governador de Macau.
António Augusto de Miranda

2 comentários:

Maria José Miranda disse...

Espetacular a descrição deste banquete. Estourem crer que muito da colorida festança é resultado da vivência de 3 anos enquanto jurisprudente

Miranda disse...

Caros conterrâneos:
Lembro-me do Dr. António Augusto de Miranda, desde garoto e de ir várias vezes levar o almoço ao meu pai (José Reis de Melo-carpinteiro e pedreiro), que junto com meu tio, Joaquim Henriques de Miranda, da mesma profissão, construíram a sua residência, em Fontes- Alquerubim.
Recordo-me ainda, das suas apreciadas crônicas, que durante anos, deram vida à "Mensagem", que levava um pouco de cultura aos seus leitores.
Como emigrei em 1952, perdi a ligação com essa publicação, que anos depois, deixou de ser publicada e que agora, revivo com saudosas lembranças.

José Miranda Reis de Melo
Conselheiro das Comunidades Portuguesas (CCP)
Recife / Brasil