Recordando, maio de 1962


A época dos Folares
OBSERVAÇÃO: Este escrito aparece atrasado um mês. Chegado à tipografia no dia habitual, não encontrou cabimento, porque o jornal já estava composto e preparado para entrar na máquina.
Curvei-me, conformado e resignado, perante esta manifestação de negligência do simpático pessoal da «Gráfica do Vouga», com os meus melhores votos por igual prontidão nos futuros números do jornal, o que me obrigará, por minha vez, a ser mais expedito.

Já aqui fiz referência à época pascal e aos seus folares.
Depois do Natal — a Festa por excelência, em que a Igreja celebra o Nascimento de Jesus — vem, cronològicamente e em importância — a da Ressurreição, que culmina, como a palavra o diz, na ressurreição de Jesus no terceiro dia depois da sua morte, precedida dos horrores da sua Paixão.
Em contraste com a tristeza e a amargura dos dias da Semana Santa, em que se rememoram, os sofrimentos morais e físicos que martirizaram Jesus Cristo nos últimos dias da sua vida, surge o momento solene da sua ressurreição, em que por toda a superfície da terra passa um sopro de vida e de alegria. É a Festa da Ressurreição de Jesus Cristo, que o Cristianismo celebra com a visita paroquial aos fiéis da freguesia.
Festa de muita alegria, pelo seu significado, esta alegria como que anda no ar, e no ar parece espalhar-se o aromados folares que nesta época se fabricam para os padrinhos distribuírem pelos afilhados…
… — Os que os têm, dirão os leitores.
É verdade. Há muitas crianças que não têm padrinhos para delas se lembrarem nesse dia, como as há que nunca sentiram a ventura de receber um brinquedo pelo Natal. E isto parece-me ser uma das maiores infelicidades que podem suceder a um ser humano. Pior que isto, só não ter mãe. A lembrança da Páscoa, com os seus folares e a visita do Prior aos domicílios, é das mais duradouras pela vida fora. Mais vincada que esta, só a da primeira comunhão, quando feita com a solenidade e a ternura que lhe imprime uma festa religiosa em que as crianças ocupam o primeiro plano. No entanto, a uma já grande distância do dia da minha primeira comunhão, noto uma nítida decadência no entusiasmo por esta festa, como no da visita pascal. Naquele tempo, ninguém se lembrasse de não abrir a porta da sua habitação. Até os indiferentes pelas coisas da religião recebiam com franca hospitalidade o prior e o seu grupo: o regedor envergando opa vermelha, transportando o crucifixo que dá a beijar a todos os da casa, ajoelhados à roda da sala, ao meio da qual uma mesa ostenta qualquer guloseima; o sacristão, com a caldeirinha de água benta, que o prior asperge por toda a casa para afugentar os malefícios que o diabo às vezes se lembra de espalhar; os homens que transportam os cestos para recolha das ofertas, etc., etc., não faltando o rapazio que vai ao cheiro das amêndoas que os donos da casa às vezes lhes lançam à rebatinha.
Hoje — ouço dizer — há pessoas que não abrem a porta ao Prior. Não me espanta isso nos meios citadinos, de grandes aglomerados populacionais, onde o vizinho da direita não conhece o da esquerda e com um número de fogos que dava para meses de visita.
Nos meios rurais, porém, não é assim. Aqui todos se conhecem, e, de maneira geral, poucos se recusarão a abrir a porta ao portador da Boa Nova.
Mas como os tempos estão mudados! Quem atingiu uma vida longa, melhor avalia esta transformação social, que mais se acentuou nas duas últimas décadas.
Para melhor?
Para pior?
Já me não interessa directamente sabê-lo; e, se é para pior, melhor será eu não o saber, pelos filhos e netos que cá deixo.
… Mas voltemos aos folares. Estes é que não têm melhorado com o rodar dos anos. Cada vez piores. Todos os anos mudo de padeiro, levado na esperança de obter uns folares que se assemelhem àqueles a que habituei o paladar em criança, mas debalde. Uns, porque saem duros e acaçapados; outros, porque a massa é azeda, todos têm o seu defeito. Por isso eu tenho saudades daqueles ricos folares da Margarida Padeira, que era uma verdadeira especialista neste género de pão doce, de comer e chorar por mais.
Tive a tentação de recorrer a uma casa de Aveiro, das que fabricam os conhecidos bolos de «24 horas», de massa leve, e encomendar lá os folares deste ano, aplicando-lhes a massa com que se fabricam aqueles bolos.
No fim de contas, a diferença apenas consistiria no feitio do folar e nos ovos e respectivas correias que os seguram, que os de 24 horas não têm.
Mas receio que os ovos, sentindo-se em colchão fofo, se enterrem pela massa abaixo e desapareçam, fritos, no lar do forno. E então bem poderíamos dizer que foi pior a emenda que o soneto. Mas, como ainda falta um ano para eu tomar uma resolução, e os afilhados não podem ficar semos seus folares, mesmo que os tenham de pôr de molho de uma dia para o outro, para os poderem trincar — irei pensando no caso, se Deus me ajudar.
António Augusto de Miranda

1 comentário:

Maria José Miranda disse...

Meu avô, os folares de Alquerubim têm-se mantido com bastante qualidade, segundo a opinião das senhoras (que entretanto nos deixaram) dessa época. Falo dos folares da Vitália e da Isilda. Os Vaz Velho também por lá vão arranhando mas em casa da tia Cândida faziam-se bem bons. Como é que nesta crónica lamenta a míngua dessa guloseima?!? Então a senhora sua nora não lhe desougava a vontade?