A época dos Folares
OBSERVAÇÃO: Este escrito aparece atrasado um mês. Chegado à tipografia no
dia habitual, não encontrou cabimento, porque o jornal já estava composto e
preparado para entrar na máquina.
Curvei-me, conformado e resignado, perante esta manifestação de
negligência do simpático pessoal da «Gráfica do Vouga», com os meus melhores
votos por igual prontidão nos futuros números do jornal, o que me obrigará, por
minha vez, a ser mais expedito.
Já aqui fiz referência à época
pascal e aos seus folares.
Depois do Natal — a Festa por
excelência, em que a Igreja celebra o Nascimento de Jesus — vem,
cronològicamente e em importância — a da Ressurreição, que culmina, como a
palavra o diz, na ressurreição de Jesus no terceiro dia depois da sua morte,
precedida dos horrores da sua Paixão.
Em contraste com a tristeza e a
amargura dos dias da Semana Santa, em que se rememoram, os sofrimentos morais e
físicos que martirizaram Jesus Cristo nos últimos dias da sua vida, surge o
momento solene da sua ressurreição, em que por toda a superfície da terra passa
um sopro de vida e de alegria. É a Festa da Ressurreição de Jesus Cristo, que o
Cristianismo celebra com a visita paroquial aos fiéis da freguesia.
Festa de muita alegria, pelo seu
significado, esta alegria como que anda no ar, e no ar parece espalhar-se o
aromados folares que nesta época se fabricam para os padrinhos distribuírem
pelos afilhados…
… — Os que os têm, dirão os
leitores.
É verdade. Há muitas crianças que
não têm padrinhos para delas se lembrarem nesse dia, como as há que nunca
sentiram a ventura de receber um brinquedo pelo Natal. E isto parece-me ser uma
das maiores infelicidades que podem suceder a um ser humano. Pior que isto, só
não ter mãe. A lembrança da Páscoa, com os seus folares e a visita do Prior aos
domicílios, é das mais duradouras pela vida fora. Mais vincada que esta, só a
da primeira comunhão, quando feita com a solenidade e a ternura que lhe imprime
uma festa religiosa em que as crianças ocupam o primeiro plano. No entanto, a
uma já grande distância do dia da minha primeira comunhão, noto uma nítida
decadência no entusiasmo por esta festa, como no da visita pascal. Naquele
tempo, ninguém se lembrasse de não abrir a porta da sua habitação. Até os
indiferentes pelas coisas da religião recebiam com franca hospitalidade o prior
e o seu grupo: o regedor envergando opa vermelha, transportando o crucifixo que
dá a beijar a todos os da casa, ajoelhados à roda da sala, ao meio da qual uma
mesa ostenta qualquer guloseima; o sacristão, com a caldeirinha de água benta,
que o prior asperge por toda a casa para afugentar os malefícios que o diabo às
vezes se lembra de espalhar; os homens que transportam os cestos para recolha
das ofertas, etc., etc., não faltando o rapazio que vai ao cheiro das amêndoas
que os donos da casa às vezes lhes lançam à rebatinha.
Hoje — ouço dizer — há pessoas
que não abrem a porta ao Prior. Não me espanta isso nos meios citadinos, de
grandes aglomerados populacionais, onde o vizinho da direita não conhece o da
esquerda e com um número de fogos que dava para meses de visita.
Nos meios rurais, porém, não é
assim. Aqui todos se conhecem, e, de maneira geral, poucos se recusarão a abrir
a porta ao portador da Boa Nova.
Mas como os tempos estão mudados!
Quem atingiu uma vida longa, melhor avalia esta transformação social, que mais
se acentuou nas duas últimas décadas.
Para melhor?
Para pior?
Já me não interessa directamente
sabê-lo; e, se é para pior, melhor será eu não o saber, pelos filhos e netos
que cá deixo.
… Mas voltemos aos folares. Estes
é que não têm melhorado com o rodar dos anos. Cada vez piores. Todos os anos
mudo de padeiro, levado na esperança de obter uns folares que se assemelhem
àqueles a que habituei o paladar em criança, mas debalde. Uns, porque saem
duros e acaçapados; outros, porque a massa é azeda, todos têm o seu defeito.
Por isso eu tenho saudades daqueles ricos folares da Margarida Padeira, que era
uma verdadeira especialista neste género de pão doce, de comer e chorar por
mais.
Tive a tentação de recorrer a uma
casa de Aveiro, das que fabricam os conhecidos bolos de «24 horas», de massa
leve, e encomendar lá os folares deste ano, aplicando-lhes a massa com que se
fabricam aqueles bolos.
No fim de contas, a diferença
apenas consistiria no feitio do folar e nos ovos e respectivas correias que os
seguram, que os de 24 horas não têm.
Mas receio que os ovos,
sentindo-se em colchão fofo, se enterrem pela massa abaixo e desapareçam,
fritos, no lar do forno. E então bem poderíamos dizer que foi pior a emenda que
o soneto. Mas, como ainda falta um ano para eu tomar uma resolução, e os
afilhados não podem ficar semos seus folares, mesmo que os tenham de pôr de
molho de uma dia para o outro, para os poderem trincar — irei pensando no caso,
se Deus me ajudar.
António Augusto de Miranda
1 comentário:
Meu avô, os folares de Alquerubim têm-se mantido com bastante qualidade, segundo a opinião das senhoras (que entretanto nos deixaram) dessa época. Falo dos folares da Vitália e da Isilda. Os Vaz Velho também por lá vão arranhando mas em casa da tia Cândida faziam-se bem bons. Como é que nesta crónica lamenta a míngua dessa guloseima?!? Então a senhora sua nora não lhe desougava a vontade?
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