Ainda em referência ao aparelho
receptor de T.S.F. que adquiri em 1927, e a que aludo no último ou penúltimo
“Recordando”, a sua história não acaba ali. Ele foi, como eu disse, o primeiro
receptor introduzido em Alquerubim, mas estava-lhe reservado ser também o
primeiro que apareceu em todo o planalto de Benguela.
Quando o comprei, eu nada sabia
daquilo. Se eu, hoje, pouco ou nada sei, o que não seria naquele tempo, em que
eu sabia o que era um receptor apenas por ter visto e ouvido um a funcionar, já
não sei onde! Ouvia falar em ondas hertzianas, que se transmitem através do
espaço com o auxílio da electricidade; em ondas compridas, médias e curtas:
tudo isto me era intuitivo, mas praticamente, era-me inteiramente desconhecido.
A T. S. F. estava na sua infância e eu era um leigo no assunto. E foi enlevado
pela formosura da novidade e enganado pela ignorância da matéria, que eu
resolvi levar comigo o aparelho, no meu regresso ao Bié, em cuja comarca estava
colocado, cheio da esperança de ouvir a estação da cidade do Cabo, na União
Sul-Africana, na qual ouvira falar antes da minha partida para a metrópole,
como a última maravilha do mundo.
Ora o aparelho trabalhava com
baterias, porque a electricidade era luxo de que poucas terras ainda gozavam.
Resolvi, por isso, comprar em Lisboa, na ocasião do embarque, além da pilha
seca, uma boa bateria por carregar.
Em Vila Silva Porto (assim se
chamava naquele tempo a graciosa capital do Bié, hoje cidade de Silva Porto),
residia um indivíduo meu amigo, natural de Águeda que noutros tempos cursara o
liceu de Aveiro, dotado de uma habilidade rara, que ficou entusiasmadíssimo com
o aparelho. Chamava-se (e suponho que ainda é vivo) José de Melo Júnior, e
havia de ser mais tarde um distinto amador de radiotelefonia, mas que naquele
tempo sabia tanto como eu.
A primeira coisa em que pensámos
foi na montagem da antena, resolvendo que ela fosse em T, que era a forma
nesse tempo mais recomendada. Para a suspender fomos, na carrinha do Zé de Melo
(ele era agrimensor) procurar dois bons paus de eucalipto, que encontrámos já
não sei onde, a mais de 20 quilómetros. Passados uns dias, chegaram as árvores
aos ombros de vários pretos, e com elas conseguimos pôr no ar uma elegante
antena, suspensa de dois postes, direitos como dois mastros de navio.
Entretanto, chegou a bateria da
Catumbela, onde, por conhecimento de um amigo do Zé de Melo, tinha estado a
carregar, na geradora eléctrica da fábrica de açúcar daquela vila.
Tudo a postos, em certo dia
tratámos de experimentar a “máquina”, mas esta, por mais voltas que déssemos
aos botões, não se dignou consolar-nos com uma nota de música ou som de voz.
Que arrelia!
E assim todas as demais noites.
Só uma vez, é que, no meio da barulheira dos atmosféricos, conseguimos ouvir
estas palavras:
- Good night! (boa noite!)
Sim senhores, valeu a pena tanto
trabalho e tempo perdido!
Vim mais tarde a saber que nas
regiões tropicais, as ondas hertzianas compridas transmitem-se com muita
dificuldade. Pelos estudos dos teóricos e a persistência e dedicação dos
amadores é que mais tarde vieram a descobrir a excelência das ondas curtas e
extracurtas para as transmissões a grandes distâncias, através de zonas as mais
afectadas dos ruídos atmosféricos.
Mas não termino sem referir a
nota cómica que a existência do meu “posto” de T. S. F. provocou nas terras do
Bié.
A minha casa ficava perto do
correio da vila, a qual, naquele tempo, como sede de distrito e de comarca,
dispunha de serviço de transmissões telegráficas em voga: por meio dos arames.
O uso da Telegrafia-Sem-Fios ainda estava embrionário, havendo uma estação em
Camacupa, se a memória me não falha.
De maneira que o meu “posto”
fazia um figurão naquele ermo sertanejo do Bié. Com uma antena de cerca de 15
metros de comprido, entre dois postes de 12 de altura, era fácil, para olhos
inexperientes, de confundir-se com uma verdadeira estação de T. S. F.
Certo dia, bateu-me à porta um
sujeito bem trajado, europeu, ainda novo: dos seus 30 anos. Fui eu mesmo quem o
atendeu, pois tinha o meu escritório na saleta de entrada. Disse-me que
desejava expedir um telegrama.
A primeira impressão foi que se
tratava de um embusteiro que se queria divertir à minha custa. Mas a expressão
do seu rosto era da maior sinceridade. Era pessoa de fora, não me conhecia, e
eu levei o caso a rir, explicando-lhe que se tratava de um posto de amador de
radiotelefonia.
Aquilo para ele devia parecer
latim, pela cara que fez, de incredulidade e incompreensão. Vinha do mato, onde
nunca tinha ouvido falar em coisas tão transcendentes. Indiquei-lhe a estação
telegrafo-postal, ali na vizinhança, ele para lá se dirigiu.
Soube depois que ficara enfiado
quando o informaram de que eu era o juiz da comarca, pelo receio de que eu o
tivesse tomado por um impostor.
(in Mensagem de 15 de março de 1959)
António Augusto de Miranda
2 comentários:
A propósito da TSF e das ondas hertzianas. A propagação em AM tem muito maior alcance no mar porque a água é um seu excelente condutor (por isso, os postos de rádio nos navios não precisam de ser muito potentes). Daí que, em climas secos como no planalto do Bié (e não por se localizar nos trópicos) a propagação é inferior. Também tem influência a ionização do ar: de noite, porque a ionização é pouca, o alcance é menor do que de dia, conseguindo-se melhorá-la transmitindo em maiores comprimentos de onda. E era à noite que as pessoas ouviam normalmente a rádio.
Outro pormenor: o comprimento das antenas em AM deve ser um sub-múltiplo do comprimento de onda (normalmente 1/4) e daí o tamanho que as antenas tinham.
Bom dia, Mário. Se o avô como diz na crónica, nada sabia destas coisas, eu nada, mas mesmo nada sei. Gostei muito da tua explicação sobre as ondas hertzianas (confesso que pedi ajuda ao Tó para me explicar umas "coisinhas" que escreveste). Esta aventura do aparelho ir de Alquerubim para a Bié é maravilhosa. Pena é que o avô, que tanto gostava de música, não tenha conseguido ouvir a estação da cidade do Cabo.
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